• 14° SINAGEO – Simpósio Nacional de Geomorfologia
  • Corumbá / MS
  • 24 a 30 de Agosto de 2023

SUBSÍDIOS À INVESTIGAÇÃO DA EVOLUÇÃO HIDROGRÁFICA E DO RELEVO NOS PLANALTOS DO LESTE DE MINAS GERAIS: Anomalias de drenagem na bacia do Rio Piranga

Autores

  • ARIAN ALVES FERREIRA GONÇALVESUFMGEmail: a.alvesfg19@gmail.com
  • FREDERICO FREITAS SANTOSUFMGEmail: frederico31fs@gmail.com
  • LUIZ FERNANDO DE PAULA BARROSUFMGEmail: luizfpaulabarros@gmail.com
  • ANTÔNIO PEREIRA MAGALHÃES JRUFMGEmail: antonio.magalhaes.ufmg@gmail.com

Resumo

O presente trabalho busca analisar a configuração da rede hidrográfica da bacia do Rio Piranga, particularmente quanto à presença de rupturas de declive (knickpoints) e anomalias de drenagem, a fim de evidenciar o controle geológico (passivo e/ou ativo) na evolução do sistema fluvial. A pesquisa foi realizada com base na Relação Declividade-Extensão e na análise da distribuição de anomalias (cotovelos, trechos retilíneos, meandros comprimidos) pelo Google Earth Pro, na bacia principal e em sub-bacias selecionadas. Foi averiguado que grande parte das rupturas de declive se concentram no embasamento cristalino (gnaisses e migmatitos) e em zonas de depósitos aluviais, indicando migração lateral dos rios na porção média-baixa da bacia. Porém, expressiva parte das anomalias e knickpoints acentuados ocorrem no alto curso e na porção leste da bacia, denotando possível basculamento de blocos e rearranjo da drenagem.

Palavras chaves

Geomorfologia fluvial; Dinâmica fluvial; Rede hidrográfica; Anomalias de Drenagem; Índices morfométricos

Introdução

Parte da porção leste de Minas Gerais é drenada pela bacia do Rio Doce, que tem o Rio Piranga como um de seus formadores. A hidrografia na bacia do Rio Doce é fortemente controlada por dois sistemas estruturais (NNE-SSW e E-W), que refletem a importância dos eventos tectônicos Brasiliano e Sul-Atlantiano (SOUZA, 1995). Como evidências da neotectônica nos divisores da bacia do Rio Piranga, foram encontrados, por exemplo, colúvios pleistocênicos falhados (SOUZA, 1995) e registros de captura fluvial (CHEREM et al., 2013). Neste caso, a bacia do Rio Doce teria capturado parte da bacia do Rio Paraná, o que explicaria o forte gradiente altimétrico entre a bacia do alto Rio Doce e o restante da mesma, separadas por um knickpoint de aproximadamente 250 m. Nas últimas décadas, a aplicação de indicadores geomorfométricos como a Relação Declividade Extensão (RDE) tem se consolidado na análise das rupturas de declive (knickpoints) no perfil longitudinal de cursos d’água (HACK, 1957; 1973; ETCHEBEHERE, 2004). Anomalias de drenagem também são, há décadas, frequentemente investigadas nos estudos de controle geológico da evolução da hidrografia (HOWARD, 1967; SCHUMM, 1986; SALGADO et al., 2018; 2019; FORTES et al, 2007; FURRIER et al, 2013). Anomalias, neste caso, configuram-se como trechos fluviais geometricamente distintos do padrão comumente encontrado em cada área, podendo englobar mudanças abruptas de direção (cotovelos), trechos retilíneos ou zonas de meandros atípicos (HOWARD, 1967; SCHUMM, 1986). Neste sentido, este artigo busca avaliar a configuração da rede hidrográfica da bacia do Rio Piranga, particularmente quanto à presença de knickpoints e anomalias de drenagem, associando os resultados e buscando evidências de controle geológico (passivo e/ou ativo) na evolução da hidrografia. Desse modo, este trabalho busca contribuir para os estudos sobre as influências estruturais e tectônicas na configuração da rede de drenagem regional. Situada no alto Rio Doce, a bacia do Rio Piranga possui área de 6.600 km2 e tem sua nascente a aproximadamente 1.220 m de altitude, estando localizada na Serra das Vertentes, município de Ressaquinha, região leste de Minas Gerais. As cabeceiras ocorrem no encontro dos conjuntos serranos da Mantiqueira e do Espinhaço e a foz ocorre na confluência com o Rio do Carmo, na cota de aproximadamente 350 m, dando início ao Rio Doce no município de Santa Cruz do Escalvado. Em termos geotectônicos, a bacia do Rio Piranga se encontra inserida entre a Faixa Mantiqueira e a borda sul do Cráton do São Francisco (BERTOLINI; CHEREM, 2016). O rio flui sobre rochas proterozóicas do Complexo Mantiqueira (ortognaisses com intercalações de anfibolitos), do Supergrupo Minas (xistos e metagrauvacas), e do Grupo Dom Silvério (xistos aluminosos), além das rochas arqueanas do Complexo Acaiaca (granulitos). A bacia também abrange suítes alcalinas, corpos granitóides e depósitos quaternários em zonas de intensa deformação (IGAM, 2007). Seis unidades de relevo ocorrem na bacia (CAMARGO, 2012): Depressão Interplanáltica do Alto-médio Rio Doce (porção nordeste da bacia, unidade mais a jusante): relevo com elevada dissecação e altitudes médias em torno de 550 m; Planalto Deprimido do Rio Piranga (porção centro-nordeste da bacia, seguindo o percurso do rio principal): relevo ondulado com colinas dissecadas, havendo alternância de segmentos fluviais com planícies e outros com leitos encaixados e acidentados; Planalto do Campo das Vertentes (preenche grande parte da bacia, com exceção da parte a jusante): relevo de colinas pouco dissecadas; Planalto de Senhora de Oliveira (porção sucinta localizada na parte central da bacia): relevo semelhante ao do domínio anterior, mas com maiores altitudes e dissecação; Quadrilátero Ferrífero (estreita faixa na porção leste da bacia): domínio com bordas serranas e interior rebaixado; Borda da Serra do Espinhaço (estreita faixa na porção mais a sudoeste da bacia): relevo serrano com vales encaixados.

Material e métodos

A pesquisa foi realizada com o auxílio de uma sistematização bibliográfica e cartográfica, incluindo (i) mapeamento geológico do estado de Minas Gerais, digitalizado e disponibilizado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) na escala 1:100.000; (ii) modelo digital de elevação (MDE) do satélite ALOS PALSAR com 12,5 m de resolução espacial, disponibilizado pelo portal da National Aeronautics and Space Adminisration (NASA); e (iii) imagens de satélite de alta resolução dos blocos de imagens CNES/Airbus (2 a 5 metros de resolução espacial) provenientes do Google Earth. Estes materiais viabilizaram a criação de mapas temáticos diversos bem como a análise visual da rede hidrográfica em busca de anomalias com o auxílio do software QGIS 3.14, além da aplicação de ferramentas para a identificação de knickpoints. Conforme Hack (1957, 1973) e Etchebehere (2004), a Relação Declividade-Extensão (RDE) possibilita a identificação de anomalias em perfis fluviais longitudinais (knickpoints, ou rupturas de declive). Neste trabalho, a obtenção desse parâmetro foi feita por meio da aplicação da ferramenta Knickpoint Finder, desenvolvida por Queiroz et al., (2015) para o ArcMap 10.8, utilizando a escala de 1:100.000, com equidistância igual a 10 m. A classificação das anomalias se dá pela relação entre RDEtrecho/RDEtotal de cada curso d’água: trechos com valores até 2 não são considerados anômalos, valores entre 2 e 10 indicam anomalia de 2ª ordem e valores acima de 10 apontam anomalias de 1ª ordem (SEEBER e GORNITZ, 1983). Foram consideradas como anomalias de drenagem: os cotovelos e demais mudanças bruscas de direção nos cursos d’água, segmentos altamente sinuosos não condizentes com a litologia e as condições de relevo, bem como os trechos altamente retilíneos e encaixados. O levantamento de anomalias na geometria dos cursos fluviais foi realizado a partir da análise da rede hidrográfica vetorial obtida no IDE-SISEMA, considerando-se somente os cursos d’água mais significativos em termos de extensão longitudinal: o próprio Rio Piranga (6ª ordem), os Rios Xopotó e Turvo Limpo (de 5ª ordem), e o Rio Bacalhau (de 4ª ordem), conforme a hierarquia fluvial no modelo de Strahler (1952). Além disso, foram realizadas conferências visuais das anomalias do curso de cada rio no software Google Earth Pro em conjunto ao MDE ALOS PALSAR. O recorte analítico para os cursos fluviais de maior ordem se mostrou necessário em função da extensão da área de estudo e da expressiva densidade de drenagem da bacia. A premissa do estudo é pautada em relacionar fatores estruturais e possíveis condicionantes tectônicos com as feições fluviais anômalas e tendência de migrações laterais dos rios em termos regionais. A interpretação dos fatores determinantes das anomalias foi realizada através do cruzamento de informações obtidas no mapa geológico (CPRM, 2004) e em conjunto com os pontos significativos de rupturas de declive em perfis longitudinais dos cursos d’água. Foi realizado um trabalho de campo no início do mês de março de 2023, tendo como foco a bacia do Rio Turvo Limpo e o vale do Rio Piranga. Pôde-se evidenciar a presença de terraços de ambos os rios supracitados, além da averiguar as anomalias de drenagem identificadas no Google Earth.

Resultado e discussão

Considerando toda a bacia do Rio Piranga, foram identificadas 94 anomalias, sendo que 33% (31 feições) ocorrem em áreas do Gnaisse Caatinga-Lamim, no embasamento cristalino. As demais anomalias se organizam em torno das unidades remanescentes que compõem a bacia, mas com um percentual significativo de 23,4% (22 feições) nos domínios do Complexo Mantiqueira, formado também por rochas do embasamento, como ortognaisses bandados com intercalações de anfibolito; e cerca de 21,3% (20 feições) em zonas de depósitos aluviais inconsolidados sobre o Complexo Mantiqueira e o Grupo Dom Silvério. Ao longo do curso principal das sub-bacias, algumas anomalias também foram identificadas em unidades constituídas em grande parte por rochas de médio a alto grau metamórfico, como nas áreas de ocorrência do Grupo Dom Silvério (xisto aluminoso), do Complexo Acaiaca (granulitos de composição granítica) e de anfibolitos. Apenas uma feição anômala se localiza no grande lineamento de falha de direção NW-SE que condiciona o encaixamento do Piranga na porção do alto curso (Figura 1). Grande parte das anomalias identificadas são mudanças bruscas de direção geral de NNE para SSW (em especial as do Rio Xopotó) e denotam controle estrutural na porção superior da bacia (MARENT et al., 2012). Outra grande parte das anomalias do Piranga é representada por curvaturas anômalas que coincidem com o direcionamento da zona de cisalhamento que se estende por todo o alto-médio curso da bacia principal. Em linhas gerais, foram identificados na bacia meandros com acentuada sinuosidade e cotovelos de drenagem heterogeneamente distribuídos ao longo de sua extensão, com ocorrências mais concentradas na porção superior da bacia e nos segmentos mais à jusante do rio principal. O quadro sugere um possível controle tectônico ativo no alto e no baixo cursos e, aparentemente, controle estrutural (passivo) no médio curso. Destaca-se a presença de falhas, lineamentos e diques que interseccionam toda a região divisora entre a Serra da Mantiqueira, a Serra do Espinhaço e o Planalto do Rio Piranga, sendo perceptíveis evidências de rearranjos da drenagem, como o caso da captura do Carandaí, analisada por Cherem et al. (2013). Os diferentes tipos de gnaisses dos complexos cristalinos, intercalados com camadas de xistos aluminosos e micaxistos, acabam por atuar na migração dos rios no momento em que impõem diferentes resistências ao leito fluvial. Os ortognaisses bandados do Complexo Mantiqueira e da unidade Caatinga-Lamim se estendem ao longo dos vales do Xopotó e do Piranga, com pouca ou quase nenhuma diferenciação litológica ao longo dos cursos d’água. Assim, a concentração dessas anomalias pode estar relacionada a pequenos falhamentos e fraturas que ocorrem em torno das sub-bacias alçadas do Piranga. Os resultados obtidos pelo cálculo do índice RDE indicam uma distribuição heterogênea das rupturas de declive mais acentuadas. Grande parte das anomalias de 1ª ordem se concentra nos trechos da porção superior da bacia e, especialmente, em segmentos meandrantes mais próximos à confluência com o Rio do Carmo. Os valores mais expressivos se situam na porção SSW da bacia, no contato da borda da Serra do Espinhaço com o planalto do Rio Piranga. Segundo Etchebehere (2004) e Fujita et al. (2011), as anomalias de 2ª ordem normalmente são associadas a contatos litológicos, mudança de energia abrupta dos rios em confluências ou falhamentos e fraturas condicionantes, enquanto as de 1ª ordem têm relação com o controle estrutural ativo, mudança abrupta de resistência litológica e possível ativação tectônica local. No Rio Piranga (Figura 3), foram identificados diversos knickpoints de 1ª ordem, com valores de RDE entre 30 e 82 em trechos encachoeirados próximos à captura fluvial do Carandaí, zona composta por afloramentos granítico-tonalíticos. No médio curso, são identificadas algumas rupturas de declive de 2ª ordem e nas zonas meandrantes do baixo curso são perceptíveis knickpoints de maior grau em meio a depósitos aluviais e sedimentos clásticos inconsolidados. O alto curso do Rio Xopotó (Figura 3) apresenta feições análogas ao Piranga, o que sugere se tratar de outra feição de captura. Esta provável captura ocorreria em uma área escarpada, onde o controle litológico não se apresenta como determinante das anomalias de drenagem, tendo em vista a ocorrência indiscriminada de granitóides. Nos rios Bacalhau e Turvo Limpo (Figura 3), as evidências de rupturas de declive são de menor ordem, mas o cenário sugere que a sub-bacia do Bacalhau não apresenta tanto controle estrutural-tectônico, enquanto a do Turvo Limpo, que apresenta diversas rupturas de menor expressão ao longo do perfil longitudinal.

Figura 2

Anomalias destacadas: 01- Trecho meandrante comprimido; 02- Mudança brusca de direção; 03- Trecho encaixado; 04 - Trecho de padrão muito meandrante.

Figura 1

Anomalias de drenagem e quadro geológico da bacia do Rio Piranga

Figura 3

Knickpoints (RDE) e contexto geológico da bacia do Rio Piranga

Considerações Finais

Em linhas gerais, nota-se que nas porções média e baixa da bacia do Rio Piranga, os indícios de controle geológico são mais evidentes, com maior frequência de anomalias de 2ª ordem. Já na porção superior, as anomalias de 1ª ordem e as ocorrências de capturas fluviais nos rios de maior ordem denotam indícios de controle neotectônico na drenagem, condicionando a morfologia serrana com escarpamentos e a exumação de rochas granitóides de alto grau metamórfico. Os resultados corroboram com a proposta morfotectônica de Souza (1995), uma vez que os knickpoints de 1ª ordem se encontram na porção NW da bacia, onde a autora propõe a ocorrência de blocos basculados para WNW. Todavia, a correlação dos resultados com a configuração morfotectônica da área necessita de mais estudos, principalmente na porção NNE e ENE da bacia. O aprofundamento da investigação do condicionamento tectônico pode ser realizado, futuramente, por meio do levantamento de indicadores cinemáticos e suas relações com o cenário estrutural.

Agradecimentos

Agradecemos ao CNPq pelas bolsas de produtividade em pesquisa; à FAPEMIG pelo apoio financeiro - Projeto APQ 00511-21; ao grupo de pesquisa RIVUS - Geomorfologia e Recursos Hídricos (UFMG).

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