Autores
- MIGUEL FELIPPEUFJFEmail: miguel.felippe@ich.ufjf.br
- JOSÉ ALMEIDA NETOUSPEmail: almeida.jose@usp.br
- ANTÔNIO MAGALHÃES JRUFMGEmail: antonio.magalhaes.ufmg@gmail.com
- LUÍSA FERREIRAPESQUISADORA INDEPENDENTEEmail: luisalbferreira06@gmail.com
Resumo
A carga dissolvida (em solução) dos sistemas fluviais tem sua origem nos
processos químicos de intemperismo e lixiviação, tendo as águas subterrâneas um
papel fundamental. Parte desse material é transferido através do escoamento de
base, sendo drenado pelas nascentes e originando os cursos fluviais. Todavia, a
mineralização das águas é um fator dependente da geologia local, hidrodinâmica
dos aquíferos e condições ambientais, de modo que nascentes de um mesmo contexto
geomorfológico podem contribuir de modo distinto na produção de carga dissolvida
dos sistemas fluviais. Esse trabalho investiga o trabalho geomorfológico de
nascentes em sete cabeceiras de drenagem localizadas na Serra do Espinhaço, na
Serra da Mantiqueira e na Depressão do Paraíba do Sul. Os resultados evidenciam
que mesmo nascentes com águas de baixa mineralização podem ter contribuições
relevantes para a perda geoquímica, caso possuam alta vazão.
Palavras chaves
Lixiviação; Itemperismo; Sólidos dissolvidos; Nascente; Cabeceira
Introdução
As cabeceiras de drenagem estão relacionadas com diversos processos
geomorfológicos que ocorrem nas encostas, no meio subterrâneo e na rede fluvial.
Por essa razão, apresentam uma drenagem complexa, fragmentada e flutuante que
indica a interação entre as águas da chuva, dos rios e de aquíferos. Suas
características são influenciadas pela estrutura geológica e geomorfológica da
região, que envolvem eventos geotectônicos passados, controle estrutural e
resistência das rochas. Além disso, também são afetadas por fatores locais, como
diferentes tipos de depósitos coluviais, aluviões restritos e mal selecionados,
solos residuais com diferentes características e profundidades e afloramentos
rochosos. Além disso, a acumulação de água em fluxos canalizados nas cabeceiras
inicia a rede de drenagem fluvial, a partir das nascentes (BENDA et al., 2005;
WHITING; GODSEY et al., 2016). Nem todas as cabeceiras de drenagem possuem
nascentes, porém, no domínio Tropical Úmido é extremamente comum que mais de uma
nascente se abrigue em uma mesma cabeceira (FELIPPE; MAGALHÃES JR, 2016).
Em uma zona incerta das cabeceiras, ocorrem conexões entre as nascentes e o rio,
de modo que, gradualmente, os processos fluviais passam a dominar a
morfodinâmica até que se tornem predominante nos canais de maior ordem. Como
resultado, as nascentes podem ser vistas como elementos ativos e essenciais na
evolução geomorfológica das paisagens, contribuindo durante o processo de
exfiltração para a transferência de material geoquímicos solubilizado. À medida
que a perda geoquímica é cumulativa ao longo da bacia hidrográfica, o material
exposto pelas nascentes se adiciona ao de outras fontes (FELIPPE et al., 2022).
Outrossim, considerando-se que carga dissolvida dos sistemas fluviais tem sua
origem nos processos químicos de intemperismo e lixiviação, as águas
subterrâneas ganham protagonismo na explicação do quantitativo de material em
solução carregado pelos rios. Em cabeceiras de drenagem, o escoamento de base
alimenta as nascentes com água de diferentes graus de mineralização a depender
da geologia local, hidrodinâmica dos aquíferos e condições ambientais, de modo
que nascentes de um mesmo contexto geomorfológico podem contribuir de modo
distinto na produção de carga dissolvida dos sistemas fluviais.
Por esse motivo, tem-se o objetivo de investigar a variabilidade espacial e
temporal da carga em solução transferida pelas nascentes para a rede fluvial. Ao
todo, 17 nascentes foram investigadas por um ano hidrológico em três unidades
geomorfológicas: Serra do Espinhaço Meridional; Depressão do Paraíba do Sul;
Serra da Mantiqueira.
A Serra do Espinhaço Meridional configura a porção sul do orógeno
neoproterozóico do Espinhaço, guardando um longo histórico de evolução
geotectônica desde a formação de bacias sedimentares até os ciclos
Transamazônicos e Brasiliano. Posteriormente, a orogênese andina reativou falhas
proterozóicas influenciando de forma determinante no modelado atual da Serra do
Espinhaço (ALKMIN e MARTINS-NETO, 1998; SALLUM-FILHO e DANDEFER, 2005). A borda
leste do Espinhaço, onde se localiza o sítio de estudo, é embasada por rochas
metassedimentares neoproterozoicas do Supergrupo Espinhaço, com predomínio local
de quartzitos, metadiamictitos e metassiltitos (ALMEIDA-ABREU e RENGER, 2002).
Os processos de empurrão da macroestrutura do Espinhaço sobre a bacia do Bambuí
(oeste) fazem com que essa área seja profundamente deformada (dobras e falhas)
com forte herança estrutural (UHLEIN et al., 1995).
Material e métodos
A seleção das três áreas de estudos pautou-se na existência de cabeceiras de
drenagem com baixo grau de antropização em diferentes contextos geomorfológicos.
Os trabalhos de campo foram realizados na Serra da Mantiqueira e do Espinhaço
entre novembro de 2015 a setembro de 2016, e na Depressão do Paraíba do Sul
entre junho de 2018 a março de 2019. Com o uso do GPS GARMIN modelo GPSMAP 64,
foram coletadas as coordenadas geográficas das nascentes e confluências
estudadas. No software ArcGIS 10.3 foram utilizadas imagens SRTM para a extração
de curvas de nível e imagens de satélite, que subsidiaram a restituição da rede
de drenagem superficial das cabeceiras, conforme Felippe et al. (2022).
O cálculo da vazão foi realizado com técnica expedita preconizada por Felippe e
Magalhães Jr. (2009), onde é cronometrado o tempo gasto na coleta de todo o
volume de um ponto amostral, com a utilização de saco plástico maleável. O
procedimento foi realizado em triplicata e o volume foi aferido com vidraria
volumétrica.
Foi coletada água em alíquotas de 500 mL em cada ponto amostral, acondicionadas
em frascos de polipropileno e enviadas sob refrigeração para análises no
Laboratório de Geomorfologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os
Sólidos Totais Dissolvidos na água foram determinados com a amostra in natura
por método gravimétrico a partir da variação da massa aferida em balança
analítica com a evaporação de 50 mL da amostra em estufa a 180°C, conforme
(FELIPPE e ALMEIDA-NETO, 2019). As análises gráficas e estatísticas foram
elaboradas no software MS Excel 2021®.
Resultado e discussão
Os resultados obtidos demonstram uma variação expressiva entre a carga em
solução das nascentes, tanto espacial, quanto sazonalmente (Tabela 1). O maior
valor de TDS (110mg/L) foi encontrado na Mantiqueira (M40), durante o período de
recessão hidrológica, quando a influência da chuva diminui e o escoamento de
base é preponderante. Outros valores elevados, acima de 100mg/L foram
encontrados na Depressão do Paraíba do Sul, tanto para o mínimo quanto para o
máximo hidrológico.
Tabela 1: Resultados de TDS e Perda Geoquímica para as nascentes estudadas
Fonte: análises laboratoriais – organizado pelos autores.
Em princípio, espera-se as maiores taxas de sólidos em solução nos períodos de
maior influência das águas subterrâneas, que tendem a ser mais mineralizadas.
Contudo, a maior média de TDS foi verificada no período de recessão (49,0mg/L),
ligeiramente superior à do mínimo hidrológico (45,7mg/L). Por outro lado, os
valores na ascensão e máximo hidrológico são, na média do rol, relativamente
próximos e 20% mais baixos do que na recessão.
Esses dados são especialmente significativos quando se percebe que as maiores
perdas geoquímicas são relativas ao mínimo hidrológico, mesmo com a diminuição
das vazões. Notadamente, as nascentes intermitentes param de drenar no período
seco, entretanto, para aquelas em que o fluxo de base é constante, há pouco (ou
até nenhum) prejuízo para a descarga hídrica quando cessam as chuvas,
diferentemente do encontrado para cursos d’água de maior ordem, nos quais o
escoamento pluvial é mais relevante.
A perda geoquímica média no mínimo hidrológico para todo o rol é de 1,5mg/s, 50%
maior do que a média registrada no máximo hidrológico (0,7mg/s). Pontualmente,
destacam-se as nascentes PS30 e PS40 com valores instantâneos da ordem de 4mg/s,
os maiores encontrados. Por outro lado, perdas abaixo de 0,2mg/s foram
registradas, em algum momento do ano, em PS20, M10, M30, M40, M50, M80, M90, E50
e até mesmo em PS30, que mostrou uma oscilação sazonal muito grande.
Observando os gráficos de variação sazonal de TDS e Perda Geoquímica por
nascente (Figura 1), percebe-se que não há qualquer tendência nítida. Enquanto
algumas nascentes parecem ter uma relação positiva com o aumento da influência
da água meteórica (PS10, PS20, PS40, M60), a maioria tem um comportamento oposto
(PS30, M30, M40, M80, M90). Todavia, o elevado número de lacunas nos gráficos
(referentes a nascentes intermitentes ou vazões não mensuráveis) dificulta
averiguar tendências. A Perda Geoquímica possui um comportamento semelhante ao
TDS, quando se observa caso a caso, com pequenas diferenças.
Figura 1: Distribuição sazonal de TDS e Perda Geoquímica por nascente em cada
área de estudo.
Fonte: dados laboratoriais – organizado pelos autores.
Com os dados agrupados por unidade espacial de estudo, é possível tecer
interpretações sobre a influência dos aspectos regionais na carga em solução das
nascentes (Figura 2). Em observância as rochas predominantes em cada área
(quartzitos, no Espinhaço, e gnaisses na Mantiqueira e Depressão do Paraíba do
Sul), sabe-se que a atuação do intemperismo químico e lixiviação é maior nos
gnaisses quando se consideram as mesmas condições climáticas.
Por outro lado, enquanto os sistemas aquíferos que alimentam as nascentes no
Espinhaço são compostos por delgadas e arenosas camadas de elúvios arenosos, na
Mantiqueira e no Paraíba do Sul a participação do aquífero granular sotoposto ao
fissural é consideravelmente maior. Além disso, a matéria orgânica superficial
exerce influência na lixiviação, bem como o tipo de nascente, já que as
helocrenas permitem maior tempo de contato das águas com os materiais
pedológicos. Contudo, o tempo de residência das águas subterrâneas em cada local
é uma incógnita, apesar de sua expressiva importância na compreensão das taxas
de intemperismo.
Figura 2: Estatística descritiva e análise gráfica da Perda Geoquímica anual.
Fonte: dados laboratoriais – organizado pelos autores.
A Perda Geoquímica Anual (Figura 2) demonstra o acúmulo de massa lixiviada pelas
nascentes na estrapolação dos dados mensurados (em quatro dias, de quatro
distintas fases do balanço hídrico) para um ano completo. Essa ferramenta
permite compreender o trabalho geomorfológico das nascentes para além de sua
sazonalidade ou de leituras instantâneas. Os dados mostraram que, em média, as
nascentes estudadas drenam 27,7kg/y de material dissolvido, sendo o valor máximo
registrado de 113,6kg/y, na nascente PS40, e o mínimo de 2,9kg/y, em M30.
PS40 é uma nascente difusa com vazão média anual que pode ser considerada baixa
(0,042L/s), apesar de estar acima da média do rol estudado. O TDS mensurado para
essa nascente foi elevado em todas as amostras, com uma média anual de 91,8mg/L.
Seus valores mais elevados de carga química foram no máximo hidrológico, período
no qual sua vazão não pode ser mensurada. Mesmo sem esse dado de perda
geoquímica instantânea (que seria certamente o seu mais elevado em todo ano
hidrológico), os demais apresentaram-se constantemente elevados, acima de
3,0mg/s. Somam-se a isso os fatores regionais associados às rochas mais
suscetíveis ao intemperismo, à cobertura de matéria orgânica e a ocorrência de
espesso manto de alteração. Por esses motivos, PS40 apresentou valores tão
elevados de carga dissolvida.
Por sua vez, M60 e M30 são as nascentes de menor descarga hídrica de todo rol,
com média anual de 0,002L/s. Além do mais, M60 esteve seca em todo o período do
mínimo e de ascensão hidrológica. A mineralização de suas águas não foi baixa
(média de 57mg/L para M30 e 48mg/L para M60), o que é condizente com os fatores
regionais associados à hidrogeologia. A baixa vazão, entretanto, promoveu uma
reduzida transferência de carga dissolvida ao longo do ano, principalmente ao se
considerar o período sem drenança. Isso fez com que M30 e M60 registrassem
apenas 2,9Kg/y de carga dissolvida.
Apesar de regularmente baixas, as Perdas Geoquímicas do Espinhaço não foram as
menores do rol, como se esperava. Com média de 23,6kg/y, foi inferior à média
geral, mas aproximadamente 30% maior do que a da Mantiqueira. Apesar dos valores
máximos mais baixos, os mínimos foram mais altos (menor assimetria),
corroborando para uma média maior. A resposta para esse fenômeno não está no TDS
(que possui e média mais baixa dentre as áreas de estudo) e sim na vazão.
A baixa mineralização das águas já era esperada, conforme explicado
anteriormente, pela baixa reatividade dos quartzitos ao intemperismo químico.
Por outro lado, a eficiência hídrica dos materiais arenosos faz com que a água
das chuvas seja rapidamente drenada, promovendo picos de vazão que elevam a
descarga anual das nascentes. Com baixas taxas de perda e armazenamento, as
vazões são mais elevadas e, mesmo com baixo TDS, conseguem promover uma perda
geoquímica significativa.
Por fim, demonstra-se que, apesar de não haver uma tendência nítida de variação
das Perdas Geoquímicas por unidade de estudo, tampouco uma regularidade desses
valores, não se pode negar que fatores regionais são sobremaneira importantes
para explicação dos resultados. Contudo, ressaltam-se elementos de escala local,
associados à estrutura e funcionalidade do sistema nascente, os quais geram a
variabilidade sazonal e espacial que os resultados demonstraram.
Considerações Finais
As nascentes marcam o início da drenagem fluvial e a transformação das águas
subterrâneas em águas superficiais. Por esse motivo, marcam o início do transporte
de material em solução pelos rios, drenando solutos extraídos dos materiais
rochosos pelos processos de intemperismo químico e lixiviação.
Apesar da baixa descarga hídrica tradicional das nascentes, estes sistemas são
capazes de promover a incorporação de grande quantidade de material solubilizado
nas bacias hidrográficas. Em média, são 27,7kg/y de Perda Geoquímica das nascentes
estudadas, com destaque para aquelas da Depressão do Paraíba do Sul, que
registraram média de 55,4kg/L. A maioria das nascentes, contudo, apresentaram
baixas taxas de carga em solução.
Nessa linha, as diferentes áreas de estudo apresentaram no conjunto dos dados
respostas variáveis. Porém, as nascentes associadas aos quartzitos do Espinhaço
tiveram maior perda geoquímica do que aquelas dos gnaisses da Mantiqueira. A
explicação encontra-se na produção hídrica, maior nos aquíferos do Espinhaço.
O estudo reforça a importância dos aspectos locais na variabilidade do papel
geomorfológico das nascentes, uma vez que houve grande assimetria dos resultados
mesmo dentro de uma mesma área de pesquisa. Reforça-se, então, a necessidade de
estudos empíricos, com dados primários de detalhe, capazes de desvelar os fatores
condicionantes desses processos.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
pelo financiamento da pesquisa (APQ-03652-16); e ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico pela bolsa de produtividade.
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