• 14° SINAGEO – Simpósio Nacional de Geomorfologia
  • Corumbá / MS
  • 24 a 30 de Agosto de 2023

INTERAÇÃO ENTRE ÁGUAS SUBTERRÂNEAS E SUPERFICIAIS NA TRANSFERÊNCIA DE CARGA DISSOLVIDA PARA O SISTEMA FLUVIAL

Autores

  • MIGUEL FELIPPEUFJFEmail: miguel.felippe@ich.ufjf.br
  • JOSÉ ALMEIDA NETOUSPEmail: almeida.jose@usp.br
  • ANTÔNIO MAGALHÃES JRUFMGEmail: antonio.magalhaes.ufmg@gmail.com
  • LUÍSA FERREIRAPESQUISADORA INDEPENDENTEEmail: luisalbferreira06@gmail.com

Resumo

A carga dissolvida (em solução) dos sistemas fluviais tem sua origem nos processos químicos de intemperismo e lixiviação, tendo as águas subterrâneas um papel fundamental. Parte desse material é transferido através do escoamento de base, sendo drenado pelas nascentes e originando os cursos fluviais. Todavia, a mineralização das águas é um fator dependente da geologia local, hidrodinâmica dos aquíferos e condições ambientais, de modo que nascentes de um mesmo contexto geomorfológico podem contribuir de modo distinto na produção de carga dissolvida dos sistemas fluviais. Esse trabalho investiga o trabalho geomorfológico de nascentes em sete cabeceiras de drenagem localizadas na Serra do Espinhaço, na Serra da Mantiqueira e na Depressão do Paraíba do Sul. Os resultados evidenciam que mesmo nascentes com águas de baixa mineralização podem ter contribuições relevantes para a perda geoquímica, caso possuam alta vazão.

Palavras chaves

Lixiviação; Itemperismo; Sólidos dissolvidos; Nascente; Cabeceira

Introdução

As cabeceiras de drenagem estão relacionadas com diversos processos geomorfológicos que ocorrem nas encostas, no meio subterrâneo e na rede fluvial. Por essa razão, apresentam uma drenagem complexa, fragmentada e flutuante que indica a interação entre as águas da chuva, dos rios e de aquíferos. Suas características são influenciadas pela estrutura geológica e geomorfológica da região, que envolvem eventos geotectônicos passados, controle estrutural e resistência das rochas. Além disso, também são afetadas por fatores locais, como diferentes tipos de depósitos coluviais, aluviões restritos e mal selecionados, solos residuais com diferentes características e profundidades e afloramentos rochosos. Além disso, a acumulação de água em fluxos canalizados nas cabeceiras inicia a rede de drenagem fluvial, a partir das nascentes (BENDA et al., 2005; WHITING; GODSEY et al., 2016). Nem todas as cabeceiras de drenagem possuem nascentes, porém, no domínio Tropical Úmido é extremamente comum que mais de uma nascente se abrigue em uma mesma cabeceira (FELIPPE; MAGALHÃES JR, 2016). Em uma zona incerta das cabeceiras, ocorrem conexões entre as nascentes e o rio, de modo que, gradualmente, os processos fluviais passam a dominar a morfodinâmica até que se tornem predominante nos canais de maior ordem. Como resultado, as nascentes podem ser vistas como elementos ativos e essenciais na evolução geomorfológica das paisagens, contribuindo durante o processo de exfiltração para a transferência de material geoquímicos solubilizado. À medida que a perda geoquímica é cumulativa ao longo da bacia hidrográfica, o material exposto pelas nascentes se adiciona ao de outras fontes (FELIPPE et al., 2022). Outrossim, considerando-se que carga dissolvida dos sistemas fluviais tem sua origem nos processos químicos de intemperismo e lixiviação, as águas subterrâneas ganham protagonismo na explicação do quantitativo de material em solução carregado pelos rios. Em cabeceiras de drenagem, o escoamento de base alimenta as nascentes com água de diferentes graus de mineralização a depender da geologia local, hidrodinâmica dos aquíferos e condições ambientais, de modo que nascentes de um mesmo contexto geomorfológico podem contribuir de modo distinto na produção de carga dissolvida dos sistemas fluviais. Por esse motivo, tem-se o objetivo de investigar a variabilidade espacial e temporal da carga em solução transferida pelas nascentes para a rede fluvial. Ao todo, 17 nascentes foram investigadas por um ano hidrológico em três unidades geomorfológicas: Serra do Espinhaço Meridional; Depressão do Paraíba do Sul; Serra da Mantiqueira. A Serra do Espinhaço Meridional configura a porção sul do orógeno neoproterozóico do Espinhaço, guardando um longo histórico de evolução geotectônica desde a formação de bacias sedimentares até os ciclos Transamazônicos e Brasiliano. Posteriormente, a orogênese andina reativou falhas proterozóicas influenciando de forma determinante no modelado atual da Serra do Espinhaço (ALKMIN e MARTINS-NETO, 1998; SALLUM-FILHO e DANDEFER, 2005). A borda leste do Espinhaço, onde se localiza o sítio de estudo, é embasada por rochas metassedimentares neoproterozoicas do Supergrupo Espinhaço, com predomínio local de quartzitos, metadiamictitos e metassiltitos (ALMEIDA-ABREU e RENGER, 2002). Os processos de empurrão da macroestrutura do Espinhaço sobre a bacia do Bambuí (oeste) fazem com que essa área seja profundamente deformada (dobras e falhas) com forte herança estrutural (UHLEIN et al., 1995).

Material e métodos

A seleção das três áreas de estudos pautou-se na existência de cabeceiras de drenagem com baixo grau de antropização em diferentes contextos geomorfológicos. Os trabalhos de campo foram realizados na Serra da Mantiqueira e do Espinhaço entre novembro de 2015 a setembro de 2016, e na Depressão do Paraíba do Sul entre junho de 2018 a março de 2019. Com o uso do GPS GARMIN modelo GPSMAP 64, foram coletadas as coordenadas geográficas das nascentes e confluências estudadas. No software ArcGIS 10.3 foram utilizadas imagens SRTM para a extração de curvas de nível e imagens de satélite, que subsidiaram a restituição da rede de drenagem superficial das cabeceiras, conforme Felippe et al. (2022). O cálculo da vazão foi realizado com técnica expedita preconizada por Felippe e Magalhães Jr. (2009), onde é cronometrado o tempo gasto na coleta de todo o volume de um ponto amostral, com a utilização de saco plástico maleável. O procedimento foi realizado em triplicata e o volume foi aferido com vidraria volumétrica. Foi coletada água em alíquotas de 500 mL em cada ponto amostral, acondicionadas em frascos de polipropileno e enviadas sob refrigeração para análises no Laboratório de Geomorfologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os Sólidos Totais Dissolvidos na água foram determinados com a amostra in natura por método gravimétrico a partir da variação da massa aferida em balança analítica com a evaporação de 50 mL da amostra em estufa a 180°C, conforme (FELIPPE e ALMEIDA-NETO, 2019). As análises gráficas e estatísticas foram elaboradas no software MS Excel 2021®.

Resultado e discussão

Os resultados obtidos demonstram uma variação expressiva entre a carga em solução das nascentes, tanto espacial, quanto sazonalmente (Tabela 1). O maior valor de TDS (110mg/L) foi encontrado na Mantiqueira (M40), durante o período de recessão hidrológica, quando a influência da chuva diminui e o escoamento de base é preponderante. Outros valores elevados, acima de 100mg/L foram encontrados na Depressão do Paraíba do Sul, tanto para o mínimo quanto para o máximo hidrológico. Tabela 1: Resultados de TDS e Perda Geoquímica para as nascentes estudadas Fonte: análises laboratoriais – organizado pelos autores. Em princípio, espera-se as maiores taxas de sólidos em solução nos períodos de maior influência das águas subterrâneas, que tendem a ser mais mineralizadas. Contudo, a maior média de TDS foi verificada no período de recessão (49,0mg/L), ligeiramente superior à do mínimo hidrológico (45,7mg/L). Por outro lado, os valores na ascensão e máximo hidrológico são, na média do rol, relativamente próximos e 20% mais baixos do que na recessão. Esses dados são especialmente significativos quando se percebe que as maiores perdas geoquímicas são relativas ao mínimo hidrológico, mesmo com a diminuição das vazões. Notadamente, as nascentes intermitentes param de drenar no período seco, entretanto, para aquelas em que o fluxo de base é constante, há pouco (ou até nenhum) prejuízo para a descarga hídrica quando cessam as chuvas, diferentemente do encontrado para cursos d’água de maior ordem, nos quais o escoamento pluvial é mais relevante. A perda geoquímica média no mínimo hidrológico para todo o rol é de 1,5mg/s, 50% maior do que a média registrada no máximo hidrológico (0,7mg/s). Pontualmente, destacam-se as nascentes PS30 e PS40 com valores instantâneos da ordem de 4mg/s, os maiores encontrados. Por outro lado, perdas abaixo de 0,2mg/s foram registradas, em algum momento do ano, em PS20, M10, M30, M40, M50, M80, M90, E50 e até mesmo em PS30, que mostrou uma oscilação sazonal muito grande. Observando os gráficos de variação sazonal de TDS e Perda Geoquímica por nascente (Figura 1), percebe-se que não há qualquer tendência nítida. Enquanto algumas nascentes parecem ter uma relação positiva com o aumento da influência da água meteórica (PS10, PS20, PS40, M60), a maioria tem um comportamento oposto (PS30, M30, M40, M80, M90). Todavia, o elevado número de lacunas nos gráficos (referentes a nascentes intermitentes ou vazões não mensuráveis) dificulta averiguar tendências. A Perda Geoquímica possui um comportamento semelhante ao TDS, quando se observa caso a caso, com pequenas diferenças. Figura 1: Distribuição sazonal de TDS e Perda Geoquímica por nascente em cada área de estudo. Fonte: dados laboratoriais – organizado pelos autores. Com os dados agrupados por unidade espacial de estudo, é possível tecer interpretações sobre a influência dos aspectos regionais na carga em solução das nascentes (Figura 2). Em observância as rochas predominantes em cada área (quartzitos, no Espinhaço, e gnaisses na Mantiqueira e Depressão do Paraíba do Sul), sabe-se que a atuação do intemperismo químico e lixiviação é maior nos gnaisses quando se consideram as mesmas condições climáticas. Por outro lado, enquanto os sistemas aquíferos que alimentam as nascentes no Espinhaço são compostos por delgadas e arenosas camadas de elúvios arenosos, na Mantiqueira e no Paraíba do Sul a participação do aquífero granular sotoposto ao fissural é consideravelmente maior. Além disso, a matéria orgânica superficial exerce influência na lixiviação, bem como o tipo de nascente, já que as helocrenas permitem maior tempo de contato das águas com os materiais pedológicos. Contudo, o tempo de residência das águas subterrâneas em cada local é uma incógnita, apesar de sua expressiva importância na compreensão das taxas de intemperismo. Figura 2: Estatística descritiva e análise gráfica da Perda Geoquímica anual. Fonte: dados laboratoriais – organizado pelos autores. A Perda Geoquímica Anual (Figura 2) demonstra o acúmulo de massa lixiviada pelas nascentes na estrapolação dos dados mensurados (em quatro dias, de quatro distintas fases do balanço hídrico) para um ano completo. Essa ferramenta permite compreender o trabalho geomorfológico das nascentes para além de sua sazonalidade ou de leituras instantâneas. Os dados mostraram que, em média, as nascentes estudadas drenam 27,7kg/y de material dissolvido, sendo o valor máximo registrado de 113,6kg/y, na nascente PS40, e o mínimo de 2,9kg/y, em M30. PS40 é uma nascente difusa com vazão média anual que pode ser considerada baixa (0,042L/s), apesar de estar acima da média do rol estudado. O TDS mensurado para essa nascente foi elevado em todas as amostras, com uma média anual de 91,8mg/L. Seus valores mais elevados de carga química foram no máximo hidrológico, período no qual sua vazão não pode ser mensurada. Mesmo sem esse dado de perda geoquímica instantânea (que seria certamente o seu mais elevado em todo ano hidrológico), os demais apresentaram-se constantemente elevados, acima de 3,0mg/s. Somam-se a isso os fatores regionais associados às rochas mais suscetíveis ao intemperismo, à cobertura de matéria orgânica e a ocorrência de espesso manto de alteração. Por esses motivos, PS40 apresentou valores tão elevados de carga dissolvida. Por sua vez, M60 e M30 são as nascentes de menor descarga hídrica de todo rol, com média anual de 0,002L/s. Além do mais, M60 esteve seca em todo o período do mínimo e de ascensão hidrológica. A mineralização de suas águas não foi baixa (média de 57mg/L para M30 e 48mg/L para M60), o que é condizente com os fatores regionais associados à hidrogeologia. A baixa vazão, entretanto, promoveu uma reduzida transferência de carga dissolvida ao longo do ano, principalmente ao se considerar o período sem drenança. Isso fez com que M30 e M60 registrassem apenas 2,9Kg/y de carga dissolvida. Apesar de regularmente baixas, as Perdas Geoquímicas do Espinhaço não foram as menores do rol, como se esperava. Com média de 23,6kg/y, foi inferior à média geral, mas aproximadamente 30% maior do que a da Mantiqueira. Apesar dos valores máximos mais baixos, os mínimos foram mais altos (menor assimetria), corroborando para uma média maior. A resposta para esse fenômeno não está no TDS (que possui e média mais baixa dentre as áreas de estudo) e sim na vazão. A baixa mineralização das águas já era esperada, conforme explicado anteriormente, pela baixa reatividade dos quartzitos ao intemperismo químico. Por outro lado, a eficiência hídrica dos materiais arenosos faz com que a água das chuvas seja rapidamente drenada, promovendo picos de vazão que elevam a descarga anual das nascentes. Com baixas taxas de perda e armazenamento, as vazões são mais elevadas e, mesmo com baixo TDS, conseguem promover uma perda geoquímica significativa. Por fim, demonstra-se que, apesar de não haver uma tendência nítida de variação das Perdas Geoquímicas por unidade de estudo, tampouco uma regularidade desses valores, não se pode negar que fatores regionais são sobremaneira importantes para explicação dos resultados. Contudo, ressaltam-se elementos de escala local, associados à estrutura e funcionalidade do sistema nascente, os quais geram a variabilidade sazonal e espacial que os resultados demonstraram.

Considerações Finais

As nascentes marcam o início da drenagem fluvial e a transformação das águas subterrâneas em águas superficiais. Por esse motivo, marcam o início do transporte de material em solução pelos rios, drenando solutos extraídos dos materiais rochosos pelos processos de intemperismo químico e lixiviação. Apesar da baixa descarga hídrica tradicional das nascentes, estes sistemas são capazes de promover a incorporação de grande quantidade de material solubilizado nas bacias hidrográficas. Em média, são 27,7kg/y de Perda Geoquímica das nascentes estudadas, com destaque para aquelas da Depressão do Paraíba do Sul, que registraram média de 55,4kg/L. A maioria das nascentes, contudo, apresentaram baixas taxas de carga em solução. Nessa linha, as diferentes áreas de estudo apresentaram no conjunto dos dados respostas variáveis. Porém, as nascentes associadas aos quartzitos do Espinhaço tiveram maior perda geoquímica do que aquelas dos gnaisses da Mantiqueira. A explicação encontra-se na produção hídrica, maior nos aquíferos do Espinhaço. O estudo reforça a importância dos aspectos locais na variabilidade do papel geomorfológico das nascentes, uma vez que houve grande assimetria dos resultados mesmo dentro de uma mesma área de pesquisa. Reforça-se, então, a necessidade de estudos empíricos, com dados primários de detalhe, capazes de desvelar os fatores condicionantes desses processos.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo financiamento da pesquisa (APQ-03652-16); e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pela bolsa de produtividade.

Referências

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