Autores
- ROGÉRIO BARROSUFJFEmail: rbarros14@outlook.com
- MIGUEL FELIPPEUFJFEmail: miguel.felippe@ich.ufjf.br
Resumo
Assim como as grandes áreas úmidas presentes em território brasileiro, as áreas
úmidas de menor extensão também fornecem variados serviços ecossistêmicos e
possuem funções valiosas para a sociedade. No entanto, são locais vistos como
insalubres e improdutivos, ficando vulneráveis à degradação ambiental. O
presente trabalho, realizado no município de Juiz de Fora – MG, buscou
demonstrar como as pequenas áreas úmidas se apresentam conectadas à integridade
da paisagem e seus sistemas fluviais. A partir de dados de sensoriamento remoto,
validados em campo, observou-se que as áreas úmidas se relacionam com outros
hidrossistemas, como nascentes, cursos d’água e lagos, tendo sua formação
associada à processos hidrogeomorfológicos de exfiltração de águas
subsuperficiais e escoamento superficial de águas pluviais.
Palavras chaves
conectividade; hidrossistema; hidromorfismo; hidrófitas; áreas úmidas
Introdução
As áreas úmidas podem ser definidas como ecossistemas na transição entre
ambientes aquáticos e terrestres, onde o nível freático se encontra geralmente
na superfície ou próximo dela, sendo ambientes permanentemente ou periodicamente
inundados por águas rasas ou com solos encharcados, formando condições para o
desenvolvimento de uma fauna e flora adaptadas à sua dinâmica hídrica (COWARDIN
et al., 1979; JUNK et al., 2014).
Esses hidrossistemas compartilham algumas características hidrológicas,
florísticas e edáficas específicas, apesar de apresentarem complexidades,
tamanhos, características e processos biogeoquímicos distintos. Desta forma, as
definições geralmente devem incluir três componentes principais: i) presença de
água na superfície ou nas raízes; ii) apresentar condições de solo que diferem
das áreas mais elevadas; iii) desenvolvimento de uma vegetação adaptada às
condições úmidas (hidrófitas). (COWARDIN et al., 1979; SMITH et al., 1995;
MITSCH & GOSSELINK, 2007).
As áreas úmidas são alguns dos ecossistemas mais produtivos e diversificados do
planeta, tanto hidrológica como ecologicamente, fornecendo uma ampla gama de
serviços ecossistêmicos, como a recarga dos aquíferos e lençol freático,
possibilidade da captação de água, estocagem periódica de água em períodos de
enchentes, controle de erosão, retenção de sedimentos, estabilização do
microclima, regulação de ciclos biogeoquímicos e armazenamento de carbono. Além
disso, possuem grande importância econômica e ecológica, servindo como base para
atividades como pesca e agricultura, e desempenhando o papel de habitat para
diversas espécies da fauna e flora (BARBIER, 1994; SEMLITSCH & BODIE, 1998;
MWITA et al., 2013).
No entanto, grande parte dos estudos sobre as áreas úmidas e suas
funcionalidades concentram-se em áreas de grandes extensões, como as planícies
amazônicas e pantaneiras no território brasileiro. Em contraste, as áreas úmidas
de menor extensão, presentes em planícies de canais de baixa ordem, ou em
cabeceiras de drenagem ou porções côncavas de vertentes, muitas vezes se mostram
negligenciadas e desprotegidas, devido à escassez de estudos, ausência de
mapeamentos e consequentemente no desconhecimento de sua existência, tornando-as
mais vulneráveis à degradação.
Fatores como a hidrologia, geomorfologia e ecologia dos sistemas fluviais como
um todo não podem ser totalmente compreendidos separadamente, existindo uma
conectividade entre eles. Tal conectividade se refere aos fluxos
multidimensionais de água, matéria, energia e sedimentos entre dois ou mais
setores da paisagem, através de múltiplos processos e em diferentes escalas,
ocorrendo a partir de fluxos laterais, longitudinais e verticais, sendo assim um
princípio fundamental para se compreender as dinâmicas hidrogeomorfológicas e
resiliência dos hidrossistemas aos distúrbios naturais e antrópicos que venham a
ocorrer dentro de uma bacia hidrográfica (CADOL, WINE, 2017; WOHL 2017; WOHL et
al., 2017).
Assim como a conectividade, as desconectividades dentro dos compartimentos da
paisagem afetam a extensão e a taxa de transferência de energia e matéria
através das bacias hidrográficas, manifestando-se em todo sistema fluvial.
Hidrossistemas como as áreas úmidas e lagos, por exemplo, atuam como elementos
de descontinuidade na paisagem ao reter água e sedimentos (FRYIRS et al., 2007;
WOHL et al., 2016).
Dentro desse contexto, este trabalho tem como objetivo compreender as
articulações espaciais entre áreas úmidas e demais hidrossistemas, tendo como
área de estudo, a bacia do córrego São Mateus, no município de Juiz de Fora –
MG. Os objetivos específicos consistem em: i) identificar as conectividades
existentes entre as áreas úmidas e outros componentes da paisagem; ii)
interpretar as características antropogênicas, topográficas, litológicas e
estruturais nos processos hidrogeomorfológicos que atuam na formação e dinâmica
hidrológica das áreas úmidas.
Material e métodos
Através de revisão bibliográfica e resgate teórico conceitual, buscou-se
compreender o que são as áreas úmidas, suas características e funcionalidades,
assim como sua integração com os compartimentos da paisagem e conectividade com
outros sistemas fluviais.
A bacia hidrográfica do córrego São Mateus está inserida no município de Juiz de
Fora - MG, situada no domínio morfoclimático dos Mares de Morros, onde o relevo
se dispõe de forma ondulada a montanhoso, com vertentes extensas e declivosas
que apresentam grandes variações de altitude (AB’SABER, 2003).
O clima da região é tropical úmido de altitude, configurando-se como do tipo Cwa
na classificação de Koppen. Esse tipo de clima apresenta duas estações bem
definidas: um verão com temperaturas mais elevadas e maiores precipitações
pluviométricas, onde os cursos d’água apresentam maiores regimes de cheia; e um
inverno mais frio e seco, com menores índices de precipitação. Esse tipo de
clima influencia os processos de intemperismo de decomposição das rochas,
gerando solos espessos e bem desenvolvidos, sendo os solos da região
predominantemente do tipo Latossolo Vermelho Amarelo Distrófico (FEAM, 2010).
A bacia hidrográfica do Córrego São Mateus é embasada por rochas do Complexo
Juiz de Fora, presentes na porção norte e sul da bacia, com tonalitos,
charnockitos e enderbitos; e do Grupo Andrelândia, presente na faixa central com
diatexitos e gnaisses, com a ocorrência de zonas de falha de cisalhamento
transcorrente dextral (CPRM, 2014) (Figura 1).
Figura 1 - Unidades geológicas da área de estudo
Fonte: Adaptado de Barros; Felippe; Costa (2022)
A identificação das áreas úmidas foi realizada mediante a utilização de técnicas
de fotointerpretação geográfica e sensoriamento remoto, através da utilização de
imagens de satélite de alta resolução provenientes do satélite Sentinel-2, com
resolução espacial de 10 metros.
Através das imagens, foram averiguados padrões de pixels de coloração cinza-
esverdeada que se diferem da vegetação padrão, que apresenta colorações mais
claras, sendo assim indicativos de vegetação higrófila e/ou solos hidromórficos,
sugerindo a presença de áreas úmidas que formam seja pela exfiltração de águas
subsuperficiais (conectividade vertical), por inundações via cursos d’água
(conectividade lateral) ou por escoamento de águas superficiais (conectividade
longitudinal).
Esta metodologia se mostra muito utilizada em estudos de identificação e
proteção de áreas úmidas, já que permitem monitorar o presente, avaliar o
passado, e prever o futuro, possibilitando o mapeamento de transformações das
áreas úmidas e alterações nas dinâmicas de uso e cobertura da terra devido ao
seu alcance temporal e espacial (MAILARD et al., 2012; MWITA et al., 2013).
Após a etapa de gabinete e identificação remota das áreas úmidas presentes na
área, a interpretação da paisagem também foi feita in loco, com visitas de campo
no dia 10/04/2023, visando o reconhecimento de três áreas úmidas, sendo
escolhidas aquelas em localidades mais acessíveis. Desta forma, buscou-se
identificar o contexto ambiental em das áreas úmidas e sua inserção na paisagem
que a circunda.
Resultado e discussão
Entre as três áreas úmidas visitadas (Figura 2), uma delas (AU1) só foi possível
visualizar da estrada, não tendo sido possível analisar aspectos referentes à
drenagem ou hidromorfismo. Essa área úmida pode ser caracterizada como uma área
úmida de depressão, apresentando um formato de meia-lua. Sua vegetação higrófita
se destaca em relação à vegetação de pastagem que a circunda. É possível
observar algumas ravinas nas encostas próximas, sugerindo assim que essa área
úmida é (também) alimentada por fluxos superficiais. O estabelecimento de um
nível de base local pode indicar uma interceptação do nível freático, indicando
que essa área úmida se alimenta de águas subsuperficiais em estações mais secas.
As outras duas áreas úmidas (AU2 e AU3) se mostraram próximas à beira da
estrada, sendo mais acessíveis, e consequentemente possibilitando uma melhor
análise de suas características. Além disso, elas apresentam características
distintas da AU1, já que apresentam drenagem à montante e se conectam com outros
elementos da paisagem.
A AU2 é uma área úmida presente no sopé de uma encosta, com drenagem à jusante e
associada a um lago, com vegetação higrófita e pastagem ao seu redor, sendo
aparentemente utilizada para dessedentação de gado. Esta área úmida se mostra
conectada a uma nascente à montante, presente em um bananal existente na área,
denotando assim uma conectividade entre nascente, área úmida e lago. No entanto,
existe uma descontinuidade nesse sistema, já que do outro lado da estrada também
foi possível identificar solo encharcado, evidenciando a limitação colocada pela
estrada.
A outra área úmida (AU3) se apresenta em um contexto semelhante, próxima à
estrada, com vegetação higrófita e pastagem no seu entorno, possuindo
hidromorfismo aparente. No entanto, não está claro se é uma área úmida de
depressão ou uma nascente helocrena, existindo uma conectividade entre a
nascente/área úmida lótica. Uma mudança no padrão de vegetação à montante pode
indicar a ocorrência de um curso d’água efêmero que abastece essa área úmida em
épocas chuvosas.
Figura 2 - Localização da área de estudo e das áreas úmidas.
Imagem A – AU1; Imagem B – AU2; Imagem C – AU3
Fonte: Elaborado pelo autor
Além disso, essas áreas úmidas se apresentam próximas a um contato litológico,
sendo esse fator responsável por influenciar a disposição e morfologia das
vertentes, cabeceiras de drenagem e dos fluxos superficiais à jusante
responsáveis por sua alimentação.
As alterações de cunho antrópico em algumas áreas, principalmente com a
construção de estradas afetam sua dinâmica e distribuição espacial, tornando-as
descontínuas em alguns casos, como na AU2. No entanto, mesmo que se mostrem em
contextos semelhantes, foi possível perceber diferenças nas características das
AU2 e AU3, mostrando que fatores litológicos, estruturais, hidrológicos e
topográficos atuam de forma conjunta para o desenvolvimento das áreas úmidas,
tornando-as únicas dentro de seu contexto na paisagem.
Portanto, foi possível observar que os hidrossistemas se mostram conectados
através de fluxos longitudinais de matéria e energia, com cada área úmida
apresentando características distintas umas das outras. Pode-se dizer que
aliados aos fluxos subsuperficiais e a exfiltração do nível freático, os fluxos
superficiais abastecem áreas côncavas onde água e sedimentos se acumulam de
forma que o fluxo à jusante é interrompido, formando uma área úmida. Tais fluxos
podem ser resultantes de escoamentos superficiais de águas pluviais, como no
caso da AU1, ou através de uma nascente abastecida por águas subsuperficiais que
alimenta cursos d’água, como no caso da AU2.
Em relação à AU3, uma hipótese seria que ela se apresenta desconectada da rede
de drenagem local em estações mais secas do ano, formando uma nascente helocrena
que não gera fluxo superficial à jusante devido à baixa energia dos fluxos e à
presença de uma estrada, sendo assim um elemento de ruptura e descontinuidade na
paisagem.
Como síntese, foi elaborado perfil esquemático representando a interação entre
diferentes hidrossistemas, onde nascentes, canais de primeira ordem, áreas
úmidas e lago se apresentam de forma conjunta e conectada dentro da paisagem
(Figura 3), assemelhando-se às dinâmicas fluviais que foram observadas nas AU2 e
AU3.
Figura 3 - Bloco diagrama mostrando a conectividade entre os sistemas fluviais
Fonte: Elaborado pelo autor
Figura 1 - Unidades geológicas da área de estudo Fonte: Adaptado de Barros; Felippe; Costa (2022)
Figura 2 - Localização da área de estudo e das áreas úmidas. Imagem A – AU1; Imagem B – AU2; Imagem C – AU3 Fonte: Elaborado pelo autor
Figura 3 - Bloco diagrama mostrando a conectividade entre os sistemas fluviais Fonte: Elaborado pelo autor
Considerações Finais
Foi possível perceber a conectividade entre nascentes, canais de primeira ordem,
áreas úmidas e lagos, conectadas em um mesmo sistema através de processos
hidrogeomorfológicos e fluxos hídricos superficiais e subsuperficiais, culminando
na formação de hidrossistemas únicos e distintos entre si, mesmo diante de
contextos topográficos e hidrológicos semelhantes.
Por estarem em área rural e serem de fácil acesso, algumas das áreas úmidas
encontradas estão sendo utilizadas pela população local. As alterações antrópicas
na paisagem atuam na conformação das áreas úmidas locais, consistindo em elementos
de descontinuidades dentro da paisagem. Desta forma, alterações na topografia para
a construção de estradas, assim como a supressão da vegetação local, podem vir a
afetar as características, a dinâmica e a qualidade da água dessas áreas úmidas,
ameaçando sua existência e também a saúde de quem as utiliza.
Fundamental para entender as áreas úmidas e protegê-las, é compreender a dinâmica
da paisagem, a conectividade das áreas úmidas com seus elementos e processos
hidrogeomorfológicos envolvidos em sua formação. Os graus de conectividade
existentes entre os sistemas fluviais influenciam na propagação de impactos
ambientais ao longo de toda bacia. Dessa forma, entender a conectividade das áreas
úmidas com a paisagem é fundamental para prever possíveis mudanças em suas
características e comportamentos, auxiliando assim em sua preservação e gestão.
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Os
autores agradecem a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFJF.
Referências
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