• 14° SINAGEO – Simpósio Nacional de Geomorfologia
  • Corumbá / MS
  • 24 a 30 de Agosto de 2023

Jogando Valheim e aprendendo Geomorfologia: os jogos comerciais como recurso didático

Autores

  • ARMANDO BRITO DA FROTA FILHOSEMEDEmail: armandofrota.filho@gmail.com
  • MICHAEL BALDI MALLER HERMENEGILDOUFRJEmail: mikelmaller@gmail.com

Resumo

Os movimentos de renovação da educação brasileira são perceptíveis, em especial no que concerne o uso de metodologias, em especial uso de mídias interativas como jogos, sejam eletrônicos ou analógicos, para tanto abre-se um leque de possibilidades usos no ensino de Geomorfologia, por exemplo. Assim, o objetivo deste artigo foi discutir a utilização de "Valheim" como recurso didático no processo de ensino-aprendizagem crítico de Geografia e Geomorfologia. Para tanto, a metodologia consistiu em um levantamento e revisão de literatura sobre os temas de Geografia Escolar, Geografia em jogos e Ensino de Geografia Física. O jogo "Valheim" se coloca como um exemplo de aplicação entre tantas outras possibilidades, que pode auxiliar no processo de superação de um ensino tradicionalista, para um crítico e contextualizado, que afeta diretamente docentes e discentes, associando à parte teórica da aula e ao cotidiano.

Palavras chaves

Jogos; Relevo; pensamento espacial; aluno-protagonista; Valheim

Introdução

Ao pesquisar práticas bem-sucedidas voltadas para o ensino de Geografia, no contexto da Educação Básica, nota-se um grande número de artigos e capítulos de livros que tratam mais prontamente de temas relacionados a questões sociais, ou seja, da dita Geografia Humana. Nessa perspectiva, os aspectos naturais conhecidos na academia como Geografia Física tendem a não ser tão explorados pelos professores do ensino fundamental e médio, seja por lacunas de formação, seja pela descontextualização e ausência de aprofundamento desses conteúdos no próprio currículo escolar (LOUZADA; FROTA FILHO, 2017; SOUZA; FURRIER, 2021), em especial, considerando a estrutura advinda a partir da Base Nacional Comum Curricular. Por anos, os aspectos naturais da Geografia no âmbito escolar foram negligenciados, relegados a poucas páginas fora de contexto, apresentando conteúdos superficiais (LOUZADA; FROTA FILHO, 2017), visto como recursos a serem explorados. Tal abordagem, limitada e restritiva, se apresenta como possível motivo de desinteresse por parte dos estudantes que não conseguem estabelecer as relações entre as características físicas do ambiente e os aspectos sociais. A partir da década de 1990, a compreensão da realidade passou por profundas transformações, impulsionadas pela emergência de questões ambientais que suscitaram uma visão sistêmica e holística do mundo. Contudo, a sua transposição para o currículo, assim como para os livros e materiais didáticos ocorreu de forma paulatina. Além disso, a mudança de visão por parte dos professores tem ocorrido de forma mais lenta, influenciada por diversos fatores, como a defasagem em seus níveis de formação e a falta de afinidade com os novos conteúdos. Somado a isso há o agravante que paira sobre a educação brasileira, o Novo Ensino Médio (NEM), o qual reduz drasticamente a carga horária da Geografia no Ensino Médio, e por consequência tem muitos de seus conteúdos cortados para melhor encaixe no bloco de “Ciências Humanas”. Para Simielli (1999), as preocupações acerca da aplicação das "disciplinas universitárias" no contexto escolar são bastante relevantes, uma vez que há o risco de descaracterização, empobrecimento ou vulgarização dos conhecimentos. Nesse sentido, a Geomorfologia, por ser uma disciplina com caráter técnico e rígido no âmbito universitário, apresenta desafios adicionais em relação à sua aplicação no contexto escolar. Assim, o questionamento que se coloca é: como tornar esse conteúdo acessível e adequado à realidade e à vivência dos estudantes no contexto da Educação Básica brasileira? Nesse sentido, o uso dos jogos, como elencam Pereira et al (2011) e Lima (2015 a; 2015 b; 2018), é um caminho efetivo e palatável aos discentes, que pode tornar o ensino de Geomorfologia mais acessível, ampliando seu destaque. A exemplo do uso de jogos eletrônicos comerciais para o ensino de geomorfologia é importante citar o trabalho de Iwahashi et al. (2019) que com o Minecraft foi capaz de confirmar os mecanismos para promover a motivação em crianças e auxiliá-las na compreensão de estruturas geológicas. O estímulo à exploração física do território pode ser facilitado por meio de jogos analógicos e digitais (SENA et al., 2018). Para o ensino de um conteúdo muitas vezes considerado rígido e hermético, os jogos se apresentam como uma possibilidade de ressignificação dos conteúdos, além de proporcionar uma nova dimensão aos discentes. Ao aplicarmos os conhecimentos geomorfológicos em um game, podemos gerar impacto no cotidiano por meio de uma releitura da relação entre o local e o global, em que o local corresponde ao universo do jogo e o global à realidade. Para que o ensino de Geografia contemple uma perspectiva reflexiva e o professor tenha ferramentas metodológicas ao seu dispor, o presente artigo tem por objetivo discutir a utilização do jogo eletrônico “"Valheim"” como recurso didático no processo de ensino-aprendizagem crítico.

Material e métodos

Os procedimentos metodológicos utilizados têm caráter qualitativo. Foi realizado levantamento e revisão bibliográfica em artigos nacionais e internacionais, dissertações, teses e livros sobre os temas Geografia Escolar, uso de jogos eletrônicos (comerciais) no ensino de Geografia e Ensino de Geomorfologia, baseado em estudos de casos, propostas metodológicas e afins, no Brasil e no mundo, visando a discussão dos jogos eletrônicos (comerciais) no processo de ensino- aprendizagem, da mesma forma que a identificação da sua importância no ensino de Geografia e Geomorfologia. Pode-se elencar autores como Gee (2009), Caruso (2011), Pereira et al. (2011), Drummond (2014; 2016), Pinheiro et al. (2013), Leffa e Pinto (2014), Lima (2015 a; 2015 b; 2018), Santos (2017), Kuhn (2018),Sena et al. (2018), Iwahashi et al (2019), Šajben et al. (2020) e Sena e Jordão (2020), Andrade et al. (2020), Martins Neto et al. (2021) e Rader et al. (2021).

Resultado e discussão

Os movimentos de renovação da educação brasileira são perceptíveis, em especial no que concerne o uso de metodologias com a utilização de música, filme, jornal, revista, jogos de tabuleiro, e recentemente, os jogos eletrônicos (PEREIRA et al., 2011). E no que concerne aos recursos didáticos empregados no ensino de geomorfologia destacam-se o uso de terrários (LOUZADA e FROTA FILHO, 2017), oficina de solos (FROTA FILHO, 2022) e até mesmo maquetes. O jogo como meio de aprendizagem é importante em todos os níveis acadêmicos visto seu potencial engajador (ŠAJBEN et al., 2020), porém é necessário ressaltar que quando se trata de jogos comerciais, os conteúdos escolares não se encontram explícitos no game, porém estimulam tanto alunos e professores procurem essas ligações. Nesse sentido, destacam-se trabalhos de Pereira et al (2011), Drummond (2014; 2016; 2019), Lima (2015 a; 2015 b; 2018), e Martins Neto et al. (2021) que fizeram dos games meios de trabalhar a geografia em sala de aula, com: Need for Speed (urbanização); City of Rauma (uso do solo urbano e segregação espacial, aglomerações urbanas, classificação das cidades e rede urbanas); Os Cavaleiros do Zodíaco: Alma dos Soldados (PC) (questões de composição da paisagem); Assassins Creed (paisagem). E no âmbito da Geomorfologia, Santos (2017), Kuhn (2018), Šajben et al. (2020), Sena e Jordão (2020) e Frota Filho (2022) tratam do uso do Minecraft enquanto recurso possível, desde a criação de paisagens e seus estudos, a verdadeiros trabalhos de campo sobre formações de estruturas geológicas-geomorfológicas. Demo (2004) aponta que, o estudo ganha uma dimensão nova para o discente quando o mesmo estuda algo que lhe dê interesse pessoal. Isto se traduz no empenho que os estudantes-jogadores desenvolvem ao jogar, assim conferindo uma camada de conhecimento escolar, mas sem tirar o fator diversão. Posto isso, a utilização de recursos didáticos, compreendidos como todos os materiais utilizados para auxiliar o processo de ensino-aprendizagem do conteúdo proposto, tem a potencialidade de facilitar a compreensão acerca do assunto abordado pelo professor. Uma vez que, como recurso didático-pedagógico, ele aponta possibilidades para preencher possíveis lacunas deixadas pelo ensino tradicional, ampliando a participação dos discentes no processo de aprendizagem (SOUZA, 2007; CASTOLDI; POLINARSKI, 2009). Para o presente artigo utiliza-se o jogo eletrônico "Valheim" desenvolvido pela Iron Gate AB e publicado pela Coffee Stain Publishing em 2021, um fenômeno do gênero de sobrevivência e exploração em mundo aberto. Ambientado em um mundo mitológico nórdico, o nome é a união de Valhalla e Helheim, tradicionais da mitologia, onde o primeiro se refere ao grande salão dos guerreiros mortos em batalha e o segundo à terra dos mortos. O jogador controla uma personagem viking que deve sobreviver em ambiente hostil, lutando contra criaturas sobrenaturais, coletando recursos, construindo abrigos e navios (FIGURA 1), e explorando o mundo em busca de novos desafios e tesouros. O game possui diversas paisagens que mimetizam uma variedade de ecossistemas reais (FIGURA 2), como pântanos e florestas, e geossistema com relevos, rochas e mesmo solos. O sistema de criação e construção se destaca como um dos pontos fortes, já que permite ao jogador criar uma variedade de ferramentas, armas, armaduras e barcos, além da customização de itens e do terreno. A partir da perspectiva de usar os jogos (eletrônicos) comerciais enquanto recurso didático que possibilita um aprendizado lúdico do saber geográfico em articulação com os conhecimentos geomorfológicos, "Valheim" se apresenta como uma, dentre várias possibilidades de jogos que tem potencial para auxiliar no entendimento de conceitos geomorfológicos. Materiais, processos e formas de relevo são possibilidades de aplicação e reflexão, ainda que o jogo não seja especificamente focado em ensinar geomorfologia, mas a utilização pode ser útil para ilustrar determinados conceitos da área. Como o jogo permite que suas personagens construam estruturas em locais específicos como praias e campos (planícies), penhascos, encostas e montanhas (FIGURA 3), tal dinâmica pode exemplificar como fatores geomorfológicos afetam a ocupação humana como elencado por Casseti (1991) sobre a apropriação do relevo. Da mesma forma, pode-se elencar o fator antrópico como agente de modificação do relevo, ou ainda discussões/debates sobre erosão e movimentos de massa no contexto da construção de estruturas, considerando encostas e planícies, por exemplo. O jogo possui níveis, inimigos, itens e a história que podem ocorrer de forma aleatória ou semi-aleatória com base em algoritmos definidos previamente pelo desenvolvedor. Dessa forma, cada vez que o jogador inicia uma nova sessão, ele encontra desafios e cenários diferentes, aumentando a variedade de exploração e o fator replay do jogo. Além disso, o aluno-jogador sempre verá novas formas de relevo, permitindo que o processo de identificação e análise seja contínuo. A tentativa de tratar a Geografia a partir de uma abordagem holística e integrada, que leve em conta as intrincadas conexões entre os elementos naturais e sociais que constituem o espaço geográfico, tem a ver com a compreensão da complexidade e da dinamicidade dos processos que moldam o mundo. Se coloca como desafio para os indivíduos envolvidos a inclusão de uma perspectiva crítica e reflexiva, capaz de fomentar a compreensão da realidade socioambiental e o cultivo de uma consciência crítica e participativa nos estudantes em relação ao mundo em que estão inseridos. Contudo, compreendemos que a proposta de utilizar o jogo "Valheim" no contexto da educação brasileira, especialmente no ambiente formal das escolas, pode não ser viável para todos os professores e estudantes devido às desigualdades sociais presentes no Brasil. Fato evidenciado durante a pandemia de COVID-19, embora a tecnologia ofereça possibilidades na educação brasileira, ela nem sempre se aplica a todas as realidades. No entanto, em contextos nos quais as condições permitam, o jogo "Valheim" pode ser uma ferramenta valiosa para revelar aquilo que estava presente o tempo todo e que muitas vezes passa despercebido pelos estudantes e professores: a possibilidade de explorar os jogos comerciais como recurso didático. E no caso da Geomorfologia, destacar sua importância e riqueza no cotidiano, indo além da visão utilitarista. Essa abordagem pode ser executada não só por meio do jogo "Valheim", mas também por outros jogos, dependendo dos professores e alunos envolvidos. Nesse sentido, apontamos outros jogos comerciais que mesmo que não sendo focados especificamente em Geomorfologia possuem potencialidades que poderiam auxiliar em seu ensino, como: “Minecraft” e “Terraria” que oferecem a possibilidade de construção e exploração de ambientes virtuais, estimulando a criatividade e o raciocínio espacial dos estudantes; “No Man's Sky” e “Subnautica” apresentam ambientes virtuais bastante diversificados, com ecossistemas, paisagens e formas de vida únicas, estimulando a compreensão de biomas e relevos. Diante das possibilidades apresentadas pelos jogos eletrônicos citados, com destaque para "Valheim", cabe ao docente utilizar suas habilidades para ampliar esses objetivos em sala de aula. O professor precisa estar atento aos interesses e necessidades dos alunos e faça indagações durante a prática, momento em que os mesmos estão mais libertos das obrigações diárias. No entanto, é importante destacar que não basta apenas discutir o potencial desses jogos na compreensão da Geografia e Geomorfologia, é necessário indicar quais jogos podem ser utilizados e auxiliar os educadores que ainda têm pouca familiaridade com tecnologias interativas. Com isso, é possível utilizar os jogos eletrônicos como ferramentas pedagógicas para o desenvolvimento do pensamento crítico e criativo dos alunos, e possibilitar uma maior compreensão do ambiente em que vivem.

Figura 1: Capturas de tela do Valheim, coleta de recursos e construçõe

A: Barco em lago; B:Agricultura; C: Apicultura; D: Extrativismo de madeira. Fonte: Valhiam. Org: Autores, 2023.

Figura 2: Capturas de tela do Valheim, paisagens e biomas.

A: Montanha; B:Planícies; C: Pântano ; D: Floresta Negra. Fonte: Valhiam. Org: Autores, 2023.

Figura 3: Capturas de tela do Valheim, construção nos biomas.

Construções - A: à beira do lago; B:em terraço fluvial; C: à beira mar; D: em patamares na encosta montanhosa.

Considerações Finais

Buscar soluções pedagógicas que valorizem a diversidade cognitiva dos estudantes, bem como a contextualização dos conteúdos, é um desafio posto na Educação Básica. A proposta de discutir "Valheim" como recurso didático no processo de ensino-aprendizagem no ensino de Geografia e Geomorfologia nos trás à tona a necessidade de superar a visão fragmentada e dicotômica que por muito tempo norteou o ensino da área. Ao reconhecer a inter-relação entre os elementos naturais e humano-sociais com sua influência mútua na organização e transformação do espaço geográfico temos na prática uma reconfiguração no modo como se constrói o conhecimento em sala de aula, estabelecendo uma nova relação dialógica entre alunos e professores. Compreende-se, portanto, que a educação deve estar em sintonia com a realidade dos estudantes e que os conteúdos devem ser selecionados com base nas necessidades e interesses dos mesmos, de forma a promover uma aprendizagem significativa e transformadora. Há a necessidade de não se limitar a pensar apenas nos métodos e conteúdos que serão ensinados, mas também na realidade em que esses alunos estão inseridos. Isso significa que os conteúdos devem ser relacionados à cotidianidade desses estudantes, de forma a tornar a aprendizagem mais significativa e relevante. Desta forma, o jogo "Valheim" se coloca como um exemplo de aplicação entre tantas outras possibilidades, que pode auxiliar no processo de superação de um ensino tradicionalista, para um crítico e contextualizado, que afeta diretamente docentes e discentes.

Agradecimentos



Referências

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