Autores
- FELIPE CASANOVAUNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULEmail: felipe.casanova2018@outlook.com
- NINA SIMONE VILAVERDE MOURAUNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULEmail: nina.moura@ufrgs.br
Resumo
Este trabalho teve como objetivo analisar o processo de ensino e aprendizagem da
atividade "Qual é o seu endereço geomorfológico?", realizada no período de
Ensino Remoto Emergencial, na disciplina de Geomorfologia e Ambiente II do curso
de Geografia da UFRGS. Buscou-se analisar o desenvolvimento de habilidades e
competências por meio da atividade que inclui, entre outras etapas, o trabalho
de campo individual, o qual foi impossibilitado de ser realizado em grupo
durante o período pandêmico. A metodologia utilizada foi qualiquantitativa por
meio de pesquisas bibliográficas, aplicação de questionários e análise e
discussão dos resultados. Entende-se que a proposta contribuiu no
desenvolvimento de habilidades e competências, sobretudo no entendimento das
relações entre sociedade e natureza. O estudo também mostrou que a atividade
teve sucesso em permitir que os alunos identificassem o lugar geomorfológico em
que vivem, entendendo as suscetibilidades naturais aos processos
geomorfológicos.
Palavras chaves
Ensino de Geomorfologia; Trabalho de Campo; Ensino Remoto Emergencial; Proposta Didática; Habilidade e competê
Introdução
Devido à pandemia de COVID-19, muitas atividades de ensino foram reformuladas
para que o estudante se tornasse o protagonista no processo de ensino e
aprendizagem, uma vez que as atividades estavam sendo realizadas à distância.
Neste contexto, o ensino de Geomorfologia durante o Ensino Remoto Emergencial
(ERE) tornou-se um desafio tanto para estudantes quanto para professores.
Estudos geomorfológicos têm como característica o trabalho de campo, que vai
além de simplesmente observar a paisagem: é essencial uma análise in loco dos
fatores que formam o relevo, integrados aos demais processos ambientais e
sociais que ocorrem no espaço geográfico. Para Castrogiovanni (2015), no ensino
de Geografia, o trabalho de campo é uma forma de permitir aos estudantes
experiências eficazes de análise e interpretação do espaço. É no campo que o
estudante aplicará a teoria estudada na sala de aula e será capaz de ler a
paisagem e compreender o espaço. Neste sentido, as atividades em campo são
entendidas como uma metodologia ativa, pois durante a saída de campo, o
estudante é o protagonista do processo de aprendizagem; é ele quem estabelece as
relações entre a teoria e a realidade durante a prática de campo (MORAES e
CASTELLAR, 2018).
Em virtude da pandemia da COVID-19 e do formato de ERE, os trabalhos de campo na
disciplina de Geomorfologia foram impossibilitados. Para compensar a ausência
desse processo de aprendizado essencial no ensino de Geomorfologia, foi criada a
atividade intitulada "Qual é o seu endereço geomorfológico?", ministrada pela
Professora Nina Simone Vilaverde Moura, do curso de Geografia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos semestres 2020/1, 2020/2, 2021/1 e
2021/2. Essa atividade consiste em que cada estudante realize uma análise e
mapeamento geomorfológico do local e arredores de sua, analisando os aspectos
geomorfológicos e ambientais em diferentes escalas espaciais e temporais
seguindo os pressupostos teórico-metodológicos de mapeamento descritos por Ross
(1992). O objetivo é de que o estudante ponha em prática os conhecimentos
adquiridos no andamento da disciplina, principalmente sobre os mecanismos
morfoclimáticos, processos de encosta/vertente, processos fluviais, processos
costeiros e cartografia geomorfológica.
Na proposta didática aqui especificada, é proposto que cada estudante realize
seu trabalho de campo individualmente, considerando seu quarteirão ou bairro, a
fim de analisar as transformações na morfologia e nos processos geomorfológicos
decorrentes da urbanização e de outros fatores antrópicos, bem como compreender
o contexto regional de sua moradia entre os compartimentos geomorfológicos do
seu município e/ou estado. O presente artigo apresenta e discute uma forma de
adaptação do trabalho de campo no ensino de Geomorfologia para o contexto de ERE
e outros ambientes de educação à distância, onde as atividades coletivas de
campo não são viáveis e é requerido o protagonismo do estudante no processo de
ensino-aprendizagem. Serão identificadas as principais dificuldades encontradas
pelos estudantes na execução da atividade "Qual é o seu endereço
geomorfológico?" bem como avaliadas as percepções dos estudantes sobre as
habilidades e competências desenvolvidas durante a realização da atividade.
Material e métodos
Para cumprir com os objetivos deste trabalho e compreender a proposta didática
intitulada "Qual é o seu endereço geomorfológico?”, os procedimentos seguiram
quatro fases:
A primeira fase da pesquisa consistiu em uma fundamentação teórica. Foram lidos
e analisados documentos institucionais como: o Projeto Pedagógico dos Cursos
(PPC) de Geografia da UFRGS (CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA, 2018), a fim de
identificar as habilidades e competências a serem desenvolvidas ao longo do
curso; a súmula da disciplina de Geomorfologia e Ambiente II com o propósito de
entender como a proposta didática está inserida no contexto da disciplina; e o
Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) 2016-2026 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO GRANDE DO SUL, 2016) visando compreender a proposta didática no contexto das
metas traçadas institucionalmente para a universidade. Também foi realizada uma
revisão bibliográfica sobre o trabalho de campo enquanto uma metodologia ativa.
A segunda fase tratou da caracterização da proposta didática no contexto da
universidade, do curso e da disciplina. A atividade envolveu a maior parte dos
conteúdos abordados na disciplina ao longo do semestre e tinha como principal
objetivo desenvolver a aplicabilidade dos conceitos até então trabalhados; saber
o lugar geomorfológico em que se vive, contextualizando-o regionalmente a fim de
compreender as suscetibilidades naturais aos processos geomorfológicos; e como
as intervenções antrópicas alteram/alteraram dinâmica geomorfológica natural.
Para que os estudantes pudessem atingir esses objetivos, foi disponibilizado,
via Ambiente Virtual de Aprendizagem, um roteiro com estrutura organizativa da
atividade, objetivos e cronograma. A atividade contou com quatro etapas:
primeiro, um levantamento bibliográfico sobre os aspectos geomorfológicos e
ambientais considerando seu local de moradia; segundo, assistir a palestra do
Prof. Jurandyr Ross sobre o relevo brasileiro no contexto da América do Sul;
terceiro, o trabalho de campo individual pelo seu bairro/quarteirão; e quarto, a
elaboração de um vídeo apresentando o seu trabalho, postando-o no YouTube e
disponibilizando-o para os colegas.
A terceira fase consistiu na realização de uma pesquisa através de um
questionário via Google Forms com os alunos que participaram da atividade, a fim
de compreender a perspectiva dos estudantes sobre a proposta. O questionário foi
elaborado com 17 perguntas, objetivas e dissertativas, divididas em quatro
blocos para melhor compreensão lógica. O primeiro bloco de perguntas visava
caracterizar os alunos em relação ao curso e ao local de moradia. O segundo
bloco foi referente ao desenvolvimento das habilidades frente à realização da
proposta didática. O terceiro bloco continha perguntas acerca do desenvolvimento
das competências frente à execução da atividade. O quarto bloco pretendia
realizar uma análise mais ampla sobre a concepção dos estudantes a respeito da
elaboração da proposta didática analisada neste trabalho.
A quarta fase referiu-se à análise e reflexão das respostas obtidas a partir do
questionário seguindo os pressupostos de Knechtel (2014) sobre pesquisa
qualiquantitativa, em que “interpreta as informações quantitativas por meio de
símbolos numéricos e os dados qualitativos mediante a observação, a interação
participativa e a interpretação do discurso dos sujeitos”. Através dos dados
quantitativos, foi possível caracterizar os estudantes que responderam aos
questionários e entender quais habilidades e competências que os alunos
consideram ter desenvolvido através da atividade. Por meio da análise dos dados
qualitativos foi possível conceber a visão dos estudantes em relação à atividade
realizada e aferir com maior acurácia o conjunto de dados. Por fim, realizou-se
uma reflexão acerca de como a proposta didática contribui no ensino de
geomorfologia.
Resultado e discussão
Após a análise dos referenciais teóricos, tornou-se evidente que a proposta
didática em questão é uma ferramenta pedagógica de excelência no ensino de
Geomorfologia. No âmbito da universidade, essa proposta está alinhada às metas
estabelecidas no PDI da UFRGS para o período 2016-2026, no que tange à
interdisciplinaridade e ao emprego das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs) no ensino, posto que a atividade sugere o uso de ferramentas de gravação
e edição de vídeos; bem como uso de Sistemas de Informações Geográficas (SIGs),
como o Google Earth e outros softwares de Geoprocessamento. Ademais, a atividade
corrobora com as metas relacionadas às práticas de aprendizagem, que visam
incentivar novas estratégias, práticas e tecnologias de ensino.
No contexto do curso de Geografia, o PPC indica a necessidade de trabalho de
campo para o pleno desenvolvimento de habilidades e competências fundamentais ao
profissional de Geografia. Diante do contexto pandêmico, a atividade se
sobressai por oferecer aos estudantes a prática de trabalho de campo mesmo em
ensino remoto.
Na conjuntura da disciplina, a proposta didática se revela eficiente na execução
dos objetivos delineados pela súmula da disciplina de Geomorfologia e Ambiente
II. A atividade proporciona o entendimento da influência das ações antrópicas na
formação do relevo e ressalta o caráter dinâmico e descontínuo das relações
entre o clima, o solo, a vegetação e o relevo. Além disso, fomenta a formação e
a utilização do vocabulário específico em geomorfologia e orienta para a
observação, descrição e análise dos fatos geomorfológicos.
Sobre o desenvolvimento de habilidades e competências por meio da proposta
didática, procedeu-se à aplicação de um questionário, sendo obtidas respostas de
23 alunos dentre os 64 que cumpriram com a atividade proposta. Deste modo, foi
possível ter noção acerca da relevância que a atividade teve durante o ERE.
Sobre as habilidades gerais do curso de Geografia, a maioria significativa dos
estudantes indicou que a proposta didática laborou no desenvolvimento de
habilidades interpretativas e analíticas de dados e informações geográficas e de
áreas correlatas, além de aprimorar o raciocínio lógico e de observação. Quanto
às habilidades específicas do bacharelado, verificou-se que, entre os discentes,
houve unanimidade no sentido de que a proposta didática fortaleceu a capacidade
de produção de sínteses integradoras com vistas a trabalhos interdisciplinares
em geografia, bem como na habilidade de aplicar os conhecimentos fundamentais da
ciência geográfica para fins de mapeamentos, delimitações e levantamentos. No
tocante às habilidades específicas da licenciatura, a maioria entendeu que a
proposta didática obteve êxito em desenvolver habilidades que permitem a
prestação de serviços especializados na área da Geografia, bem como em
incorporar recursos institucionais inovadores à sua prática pedagógica de modo a
estimular o aprendizado de seus educandos.
Acerca das competências, foi unânime entre os alunos que a atividade engendrou o
desenvolvimento das competências de leitura, análise e interpretação dos códigos
específicos da geografia, bem como a capacidade de reconhecer fenômenos
espaciais através da seleção, comparação e interpretação, identificando as
singularidades ou generalidades de cada lugar, paisagem ou território. A grande
maioria dos estudantes afirmou que todas as competências relacionadas à
contextualização sociocultural foram desenvolvidas na realização da atividade,
tais como a leitura da paisagem, a compreensão e aplicação dos conceitos
fundamentais da Geografia, bem como a identificação, análise e avaliação dos
impactos das transformações naturais, sociais, econômicas, culturais e políticas
no lugar-mundo.
Por meio de uma análise das respostas obtidas através de questões de natureza
qualitativa, constatou-se que, além das habilidades e competências previstas no
PPC de Geografia (2018), o entendimento das complexas relações entre a sociedade
e a natureza se destacou no contexto do estudo. Foi uma percepção compartilhada
entre os estudantes que a proposta didática contribuiu significativamente para a
compreensão dessas relações, que representam temas relevantes para a Geografia
e, em especial, para a Geomorfologia. No questionário, foi solicitado que o
estudante comentasse se considera que a proposta didática tenha contribuído no
entendimento das relações entre sociedade com a natureza, uma das respostas
obtidas foi a citação a seguir:
“A atividade foi a principal iniciativa para elaborar esse entendimento sobre o
lugar que moro, já que ela foi o primeiro exercício de percepção geográfica do
meu endereço. Apesar de conhecer as dinâmicas sociais e naturais locais, nunca
havia relacionado uma à outra para compor uma análise como foi proposta.”
(Anônimo)
Segundo Ter-Stepanian (1988), a partir da Revolução Industrial, as atividades
humanas tornaram-se mais intensas em relação ao meio ambiente e passaram a
afetar as dinâmicas geológicas e geomorfológicas do planeta, o que pode ser
considerado um marco inicial da transição do Quaternário para o Antropoceno,
período geológico em que o ser humano é visto como um agente geológico-
geomorfológico (SUERTEGARAY, 2018). Nessa perspectiva, a compreensão das
relações entre a sociedade e a natureza torna-se fundamental para o entendimento
da dinâmica do relevo no Antropoceno.
Ainda acerca das respostas de teor qualitativo, vale salientar que todos os
discentes destacaram que puderam compreender o contexto do relevo a partir de
sua moradia, o que proporcionou uma nova perspectiva sobre seu bairro/cidade
mediante a realização da atividade. Logo, é possível inferir que a proposta
ensejou aos alunos uma visão mais apurada sob a ótica geográfica e
geomorfológica, tornando-os aptos a compreender a dinâmica do relevo em sua
proximidade residencial. Nesse sentido, destaca-se o uso do conceito de lugar, o
qual, segundo Relph (1980), não deve ser considerado meramente como uma
categoria analítica para a Geografia, mas sim como um aspecto fundamental para a
existência humana.
“uma relação profunda com os lugares é tão necessária, e talvez tão inevitável,
quanto uma relação próxima com as pessoas; sem tais relações, a existência
humana, embora possível, fica desprovida de grande parte de seu significado”
[RELPH, 1980, p.41].
Prosseguindo, conforme Pontuschka (2004), a análise e a compreensão do lugar
podem fomentar, nos alunos, um engajamento mais expressivo em suas atitudes,
fato que se torna ainda mais eficaz quando o ambiente em questão integra o seu
dia a dia. Neste prisma, os estudos de geomorfologia partindo do lugar e do
cotidiano potencializam a compreensão dos aspectos relacionados às dinâmicas do
relevo e das problemáticas socioambientais — como demonstrado, anteriormente, na
citação de um estudante.
Por fim, seguindo a metodologia adotada neste estudo, constata-se que a proposta
didática logrou êxito na capacitação dos estudantes de Geografia, do bacharelado
e da licenciatura, no desenvolvimento de habilidades e competências de grande
relevância profissional, o que foi especialmente significativo no contexto
pandêmico e remoto em que a atividade foi implementada. A proposta superou as
expectativas, pois possibilitou que os estudantes suprissem a necessidade do
trabalho de campo e, através dele, de maneira autônoma, puderam a analisar as
formas de relevo a partir de seu local de moradia, construindo um maior vínculo
com seu ambiente local e fomentando noções de pertencimento e coletividade em
relação ao bairro. Portanto, através da avaliação dos questionários considera-se
que a proposta didática foi extremamente satisfatória em atingir o seu principal
objetivo: fazer com que os estudantes soubessem o lugar geomorfológico em que
vivem para entender as suscetibilidades naturais aos processos geomorfológicos e
as possíveis intervenções antrópicas que alteram/alteraram a dinâmica natural
desse relevo.
Considerações Finais
A proposta didática intitulada "Qual é o seu endereço Geomorfológico?"
proporcionou aos estudantes a construção autônoma e ativa do conhecimento
geomorfológico bem como o desenvolvimento de habilidades e competências. Dessa
forma, torna-se evidente a efetividade de atividades que coloquem o estudante no
centro do processo de ensino e aprendizagem, assumindo a posição de
protagonista. A utilização de metodologias ativas, portanto, ganha ainda mais
importância no contexto do ensino não presencial, em que o contato direto entre
estudante e professor se torna limitado.
É importante ressaltar que os trabalhos de campo permanecem como uma ferramenta
fundamental para o trabalho do geógrafo e do professor de geografia,
constituindo uma possibilidade também no ensino remoto. No campo, os estudantes
têm a oportunidade de analisar a paisagem e o espaço geográfico in loco,
conferindo ao estudante uma experiência significativa de aprendizagem.
É importante ressaltar que, à luz das conclusões e da efetividade da proposta
didática no ensino de geomorfologia, ela se configura como uma estratégia de
grande potencial de adaptação para o ambiente escolar, uma vez que é através do
espaço vivido (e do lugar) que o estudante passa a desenvolver a noção espacial
e, consequentemente, o raciocínio geográfico (CASTELLAR, 2000). Por fim, tendo
em vista a eficácia da proposta didática, sua manutenção na disciplina de
Geomorfologia e Ambiente II, como trabalho final, é plenamente justificável,
mesmo no contexto de ensino presencial, sem, no entanto, substituir a prática
coletiva de campo.
Agradecimentos
Referências
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