• 14° SINAGEO – Simpósio Nacional de Geomorfologia
  • Corumbá / MS
  • 24 a 30 de Agosto de 2023

"Qual é o seu endereço geomorfológico?": Experiência de ensino de Geomorfologia no período pandêmico.

Autores

  • FELIPE CASANOVAUNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULEmail: felipe.casanova2018@outlook.com
  • NINA SIMONE VILAVERDE MOURAUNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULEmail: nina.moura@ufrgs.br

Resumo

Este trabalho teve como objetivo analisar o processo de ensino e aprendizagem da atividade "Qual é o seu endereço geomorfológico?", realizada no período de Ensino Remoto Emergencial, na disciplina de Geomorfologia e Ambiente II do curso de Geografia da UFRGS. Buscou-se analisar o desenvolvimento de habilidades e competências por meio da atividade que inclui, entre outras etapas, o trabalho de campo individual, o qual foi impossibilitado de ser realizado em grupo durante o período pandêmico. A metodologia utilizada foi qualiquantitativa por meio de pesquisas bibliográficas, aplicação de questionários e análise e discussão dos resultados. Entende-se que a proposta contribuiu no desenvolvimento de habilidades e competências, sobretudo no entendimento das relações entre sociedade e natureza. O estudo também mostrou que a atividade teve sucesso em permitir que os alunos identificassem o lugar geomorfológico em que vivem, entendendo as suscetibilidades naturais aos processos geomorfológicos.

Palavras chaves

Ensino de Geomorfologia; Trabalho de Campo; Ensino Remoto Emergencial; Proposta Didática; Habilidade e competê

Introdução

Devido à pandemia de COVID-19, muitas atividades de ensino foram reformuladas para que o estudante se tornasse o protagonista no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que as atividades estavam sendo realizadas à distância. Neste contexto, o ensino de Geomorfologia durante o Ensino Remoto Emergencial (ERE) tornou-se um desafio tanto para estudantes quanto para professores. Estudos geomorfológicos têm como característica o trabalho de campo, que vai além de simplesmente observar a paisagem: é essencial uma análise in loco dos fatores que formam o relevo, integrados aos demais processos ambientais e sociais que ocorrem no espaço geográfico. Para Castrogiovanni (2015), no ensino de Geografia, o trabalho de campo é uma forma de permitir aos estudantes experiências eficazes de análise e interpretação do espaço. É no campo que o estudante aplicará a teoria estudada na sala de aula e será capaz de ler a paisagem e compreender o espaço. Neste sentido, as atividades em campo são entendidas como uma metodologia ativa, pois durante a saída de campo, o estudante é o protagonista do processo de aprendizagem; é ele quem estabelece as relações entre a teoria e a realidade durante a prática de campo (MORAES e CASTELLAR, 2018). Em virtude da pandemia da COVID-19 e do formato de ERE, os trabalhos de campo na disciplina de Geomorfologia foram impossibilitados. Para compensar a ausência desse processo de aprendizado essencial no ensino de Geomorfologia, foi criada a atividade intitulada "Qual é o seu endereço geomorfológico?", ministrada pela Professora Nina Simone Vilaverde Moura, do curso de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos semestres 2020/1, 2020/2, 2021/1 e 2021/2. Essa atividade consiste em que cada estudante realize uma análise e mapeamento geomorfológico do local e arredores de sua, analisando os aspectos geomorfológicos e ambientais em diferentes escalas espaciais e temporais seguindo os pressupostos teórico-metodológicos de mapeamento descritos por Ross (1992). O objetivo é de que o estudante ponha em prática os conhecimentos adquiridos no andamento da disciplina, principalmente sobre os mecanismos morfoclimáticos, processos de encosta/vertente, processos fluviais, processos costeiros e cartografia geomorfológica. Na proposta didática aqui especificada, é proposto que cada estudante realize seu trabalho de campo individualmente, considerando seu quarteirão ou bairro, a fim de analisar as transformações na morfologia e nos processos geomorfológicos decorrentes da urbanização e de outros fatores antrópicos, bem como compreender o contexto regional de sua moradia entre os compartimentos geomorfológicos do seu município e/ou estado. O presente artigo apresenta e discute uma forma de adaptação do trabalho de campo no ensino de Geomorfologia para o contexto de ERE e outros ambientes de educação à distância, onde as atividades coletivas de campo não são viáveis e é requerido o protagonismo do estudante no processo de ensino-aprendizagem. Serão identificadas as principais dificuldades encontradas pelos estudantes na execução da atividade "Qual é o seu endereço geomorfológico?" bem como avaliadas as percepções dos estudantes sobre as habilidades e competências desenvolvidas durante a realização da atividade.

Material e métodos

Para cumprir com os objetivos deste trabalho e compreender a proposta didática intitulada "Qual é o seu endereço geomorfológico?”, os procedimentos seguiram quatro fases: A primeira fase da pesquisa consistiu em uma fundamentação teórica. Foram lidos e analisados documentos institucionais como: o Projeto Pedagógico dos Cursos (PPC) de Geografia da UFRGS (CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA, 2018), a fim de identificar as habilidades e competências a serem desenvolvidas ao longo do curso; a súmula da disciplina de Geomorfologia e Ambiente II com o propósito de entender como a proposta didática está inserida no contexto da disciplina; e o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) 2016-2026 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, 2016) visando compreender a proposta didática no contexto das metas traçadas institucionalmente para a universidade. Também foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o trabalho de campo enquanto uma metodologia ativa. A segunda fase tratou da caracterização da proposta didática no contexto da universidade, do curso e da disciplina. A atividade envolveu a maior parte dos conteúdos abordados na disciplina ao longo do semestre e tinha como principal objetivo desenvolver a aplicabilidade dos conceitos até então trabalhados; saber o lugar geomorfológico em que se vive, contextualizando-o regionalmente a fim de compreender as suscetibilidades naturais aos processos geomorfológicos; e como as intervenções antrópicas alteram/alteraram dinâmica geomorfológica natural. Para que os estudantes pudessem atingir esses objetivos, foi disponibilizado, via Ambiente Virtual de Aprendizagem, um roteiro com estrutura organizativa da atividade, objetivos e cronograma. A atividade contou com quatro etapas: primeiro, um levantamento bibliográfico sobre os aspectos geomorfológicos e ambientais considerando seu local de moradia; segundo, assistir a palestra do Prof. Jurandyr Ross sobre o relevo brasileiro no contexto da América do Sul; terceiro, o trabalho de campo individual pelo seu bairro/quarteirão; e quarto, a elaboração de um vídeo apresentando o seu trabalho, postando-o no YouTube e disponibilizando-o para os colegas. A terceira fase consistiu na realização de uma pesquisa através de um questionário via Google Forms com os alunos que participaram da atividade, a fim de compreender a perspectiva dos estudantes sobre a proposta. O questionário foi elaborado com 17 perguntas, objetivas e dissertativas, divididas em quatro blocos para melhor compreensão lógica. O primeiro bloco de perguntas visava caracterizar os alunos em relação ao curso e ao local de moradia. O segundo bloco foi referente ao desenvolvimento das habilidades frente à realização da proposta didática. O terceiro bloco continha perguntas acerca do desenvolvimento das competências frente à execução da atividade. O quarto bloco pretendia realizar uma análise mais ampla sobre a concepção dos estudantes a respeito da elaboração da proposta didática analisada neste trabalho. A quarta fase referiu-se à análise e reflexão das respostas obtidas a partir do questionário seguindo os pressupostos de Knechtel (2014) sobre pesquisa qualiquantitativa, em que “interpreta as informações quantitativas por meio de símbolos numéricos e os dados qualitativos mediante a observação, a interação participativa e a interpretação do discurso dos sujeitos”. Através dos dados quantitativos, foi possível caracterizar os estudantes que responderam aos questionários e entender quais habilidades e competências que os alunos consideram ter desenvolvido através da atividade. Por meio da análise dos dados qualitativos foi possível conceber a visão dos estudantes em relação à atividade realizada e aferir com maior acurácia o conjunto de dados. Por fim, realizou-se uma reflexão acerca de como a proposta didática contribui no ensino de geomorfologia.

Resultado e discussão

Após a análise dos referenciais teóricos, tornou-se evidente que a proposta didática em questão é uma ferramenta pedagógica de excelência no ensino de Geomorfologia. No âmbito da universidade, essa proposta está alinhada às metas estabelecidas no PDI da UFRGS para o período 2016-2026, no que tange à interdisciplinaridade e ao emprego das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) no ensino, posto que a atividade sugere o uso de ferramentas de gravação e edição de vídeos; bem como uso de Sistemas de Informações Geográficas (SIGs), como o Google Earth e outros softwares de Geoprocessamento. Ademais, a atividade corrobora com as metas relacionadas às práticas de aprendizagem, que visam incentivar novas estratégias, práticas e tecnologias de ensino. No contexto do curso de Geografia, o PPC indica a necessidade de trabalho de campo para o pleno desenvolvimento de habilidades e competências fundamentais ao profissional de Geografia. Diante do contexto pandêmico, a atividade se sobressai por oferecer aos estudantes a prática de trabalho de campo mesmo em ensino remoto. Na conjuntura da disciplina, a proposta didática se revela eficiente na execução dos objetivos delineados pela súmula da disciplina de Geomorfologia e Ambiente II. A atividade proporciona o entendimento da influência das ações antrópicas na formação do relevo e ressalta o caráter dinâmico e descontínuo das relações entre o clima, o solo, a vegetação e o relevo. Além disso, fomenta a formação e a utilização do vocabulário específico em geomorfologia e orienta para a observação, descrição e análise dos fatos geomorfológicos. Sobre o desenvolvimento de habilidades e competências por meio da proposta didática, procedeu-se à aplicação de um questionário, sendo obtidas respostas de 23 alunos dentre os 64 que cumpriram com a atividade proposta. Deste modo, foi possível ter noção acerca da relevância que a atividade teve durante o ERE. Sobre as habilidades gerais do curso de Geografia, a maioria significativa dos estudantes indicou que a proposta didática laborou no desenvolvimento de habilidades interpretativas e analíticas de dados e informações geográficas e de áreas correlatas, além de aprimorar o raciocínio lógico e de observação. Quanto às habilidades específicas do bacharelado, verificou-se que, entre os discentes, houve unanimidade no sentido de que a proposta didática fortaleceu a capacidade de produção de sínteses integradoras com vistas a trabalhos interdisciplinares em geografia, bem como na habilidade de aplicar os conhecimentos fundamentais da ciência geográfica para fins de mapeamentos, delimitações e levantamentos. No tocante às habilidades específicas da licenciatura, a maioria entendeu que a proposta didática obteve êxito em desenvolver habilidades que permitem a prestação de serviços especializados na área da Geografia, bem como em incorporar recursos institucionais inovadores à sua prática pedagógica de modo a estimular o aprendizado de seus educandos. Acerca das competências, foi unânime entre os alunos que a atividade engendrou o desenvolvimento das competências de leitura, análise e interpretação dos códigos específicos da geografia, bem como a capacidade de reconhecer fenômenos espaciais através da seleção, comparação e interpretação, identificando as singularidades ou generalidades de cada lugar, paisagem ou território. A grande maioria dos estudantes afirmou que todas as competências relacionadas à contextualização sociocultural foram desenvolvidas na realização da atividade, tais como a leitura da paisagem, a compreensão e aplicação dos conceitos fundamentais da Geografia, bem como a identificação, análise e avaliação dos impactos das transformações naturais, sociais, econômicas, culturais e políticas no lugar-mundo. Por meio de uma análise das respostas obtidas através de questões de natureza qualitativa, constatou-se que, além das habilidades e competências previstas no PPC de Geografia (2018), o entendimento das complexas relações entre a sociedade e a natureza se destacou no contexto do estudo. Foi uma percepção compartilhada entre os estudantes que a proposta didática contribuiu significativamente para a compreensão dessas relações, que representam temas relevantes para a Geografia e, em especial, para a Geomorfologia. No questionário, foi solicitado que o estudante comentasse se considera que a proposta didática tenha contribuído no entendimento das relações entre sociedade com a natureza, uma das respostas obtidas foi a citação a seguir: “A atividade foi a principal iniciativa para elaborar esse entendimento sobre o lugar que moro, já que ela foi o primeiro exercício de percepção geográfica do meu endereço. Apesar de conhecer as dinâmicas sociais e naturais locais, nunca havia relacionado uma à outra para compor uma análise como foi proposta.” (Anônimo) Segundo Ter-Stepanian (1988), a partir da Revolução Industrial, as atividades humanas tornaram-se mais intensas em relação ao meio ambiente e passaram a afetar as dinâmicas geológicas e geomorfológicas do planeta, o que pode ser considerado um marco inicial da transição do Quaternário para o Antropoceno, período geológico em que o ser humano é visto como um agente geológico- geomorfológico (SUERTEGARAY, 2018). Nessa perspectiva, a compreensão das relações entre a sociedade e a natureza torna-se fundamental para o entendimento da dinâmica do relevo no Antropoceno. Ainda acerca das respostas de teor qualitativo, vale salientar que todos os discentes destacaram que puderam compreender o contexto do relevo a partir de sua moradia, o que proporcionou uma nova perspectiva sobre seu bairro/cidade mediante a realização da atividade. Logo, é possível inferir que a proposta ensejou aos alunos uma visão mais apurada sob a ótica geográfica e geomorfológica, tornando-os aptos a compreender a dinâmica do relevo em sua proximidade residencial. Nesse sentido, destaca-se o uso do conceito de lugar, o qual, segundo Relph (1980), não deve ser considerado meramente como uma categoria analítica para a Geografia, mas sim como um aspecto fundamental para a existência humana. “uma relação profunda com os lugares é tão necessária, e talvez tão inevitável, quanto uma relação próxima com as pessoas; sem tais relações, a existência humana, embora possível, fica desprovida de grande parte de seu significado” [RELPH, 1980, p.41]. Prosseguindo, conforme Pontuschka (2004), a análise e a compreensão do lugar podem fomentar, nos alunos, um engajamento mais expressivo em suas atitudes, fato que se torna ainda mais eficaz quando o ambiente em questão integra o seu dia a dia. Neste prisma, os estudos de geomorfologia partindo do lugar e do cotidiano potencializam a compreensão dos aspectos relacionados às dinâmicas do relevo e das problemáticas socioambientais — como demonstrado, anteriormente, na citação de um estudante. Por fim, seguindo a metodologia adotada neste estudo, constata-se que a proposta didática logrou êxito na capacitação dos estudantes de Geografia, do bacharelado e da licenciatura, no desenvolvimento de habilidades e competências de grande relevância profissional, o que foi especialmente significativo no contexto pandêmico e remoto em que a atividade foi implementada. A proposta superou as expectativas, pois possibilitou que os estudantes suprissem a necessidade do trabalho de campo e, através dele, de maneira autônoma, puderam a analisar as formas de relevo a partir de seu local de moradia, construindo um maior vínculo com seu ambiente local e fomentando noções de pertencimento e coletividade em relação ao bairro. Portanto, através da avaliação dos questionários considera-se que a proposta didática foi extremamente satisfatória em atingir o seu principal objetivo: fazer com que os estudantes soubessem o lugar geomorfológico em que vivem para entender as suscetibilidades naturais aos processos geomorfológicos e as possíveis intervenções antrópicas que alteram/alteraram a dinâmica natural desse relevo.

Considerações Finais

A proposta didática intitulada "Qual é o seu endereço Geomorfológico?" proporcionou aos estudantes a construção autônoma e ativa do conhecimento geomorfológico bem como o desenvolvimento de habilidades e competências. Dessa forma, torna-se evidente a efetividade de atividades que coloquem o estudante no centro do processo de ensino e aprendizagem, assumindo a posição de protagonista. A utilização de metodologias ativas, portanto, ganha ainda mais importância no contexto do ensino não presencial, em que o contato direto entre estudante e professor se torna limitado. É importante ressaltar que os trabalhos de campo permanecem como uma ferramenta fundamental para o trabalho do geógrafo e do professor de geografia, constituindo uma possibilidade também no ensino remoto. No campo, os estudantes têm a oportunidade de analisar a paisagem e o espaço geográfico in loco, conferindo ao estudante uma experiência significativa de aprendizagem. É importante ressaltar que, à luz das conclusões e da efetividade da proposta didática no ensino de geomorfologia, ela se configura como uma estratégia de grande potencial de adaptação para o ambiente escolar, uma vez que é através do espaço vivido (e do lugar) que o estudante passa a desenvolver a noção espacial e, consequentemente, o raciocínio geográfico (CASTELLAR, 2000). Por fim, tendo em vista a eficácia da proposta didática, sua manutenção na disciplina de Geomorfologia e Ambiente II, como trabalho final, é plenamente justificável, mesmo no contexto de ensino presencial, sem, no entanto, substituir a prática coletiva de campo.

Agradecimentos



Referências

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TER-STEPANIAN, G. Beginning of the technogene. Bulletin of the International Association of Engineering Geology - Bulletin de l'Association Internationale de Géologie de l'Ingénieur, v. 38, p. 133-142, 1988.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Plano de Desenvolvimento Institucional: PDI 2016-2026 : Construa o futuro da UFRGS. Porto Alegre, UFRGS, 2016. 77p.

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