Autores
- CAMILA TEIXEIRA GOMES VIEIRAUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: camilatex00@gmail.com
- SARA TOLEDO PEREIRAUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: sara.toledo@estudante.ufjf.br
- KÉSIA TORRES DA SILVAUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: kesia.torres@estudante.ufjf.b
- MIGUEL FERNANDES FELIPPEUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: miguel.felippe@ich.ufjf.br
Resumo
Os rompimentos de barragem ocorridos nos anos de 2015 e 2019, de responsabilidade
das mineradoras Samarco e VALE S.A, respectivamente, elucidam o potencial
modificador do ser humano de alterar significativamente o meio ambiente e a
sociedade. Essas tragédias apesar de serem um evidente objeto de estudo no âmbito
acadêmico, apresentam lacunas que necessitam ser preenchidas. O atual artigo
utilizou uma Revisão Bibliográfica Sistemática que abarca 246 trabalhos acadêmicos
selecionados, com o objetivo de evidenciar o que já foi pesquisado no contexto da
geomorfologia e que caminhos precisam ser percorridos. Nesse sentido foi possível
expor que há muito o que ser feito. Um dos caminhos é investir na pesquisa a fim
de mitigar tais lacunas.
Palavras chaves
Antropogeomorfologia; Antropoceno; Metaciência; Relevo tecnogênico; Desastres da mineração
Introdução
A geomorfologia é uma ciência que se ocupa em estudar o relevo e os processos
que ocorrem nele, tanto os provenientes da ação humana, quanto os processos
naturais, endógenos e exógenos, que constantemente atuam na modelagem do relevo
(STRAHLER, 2010). Pensando que o ser humano tem sido cada vez mais capaz de
atuar na paisagem de maneira direta e indireta, modificando os processos
morfodinâmicos e também remodelando a paisagem (ROZSA, 2007), a
Antropogeomorfologia surge como um subcampo da Geomorfologia, no qual busca-se
compreender, a partir de uma escala de tempo histórica, como os agentes
geomorfológicos tradicionais (como vento e a água) estão conectados com as
atividades humanas (HUPY, 2017).
Nesse contexto, a mineração aparece como um evidente potencial modificador do
homem na paisagem. A mineração de ferro na região do Quadrilátero Ferrífero,
no estado de Minas Gerais, por exemplo, acarretou em diversas mudanças nos
cursos d'água, que envolveram a bacia do Rio Doce e a bacia do Rio Paraopeba,
principalmente após os rompimento das barragens de rejeito. Com a alteração no
padrão de drenagem e o assoreamento dos canais, interferindo, inclusive, no
abastecimento de água de diversos municípios ao longo das bacias (MENDES, 2019).
Apesar da constante ampliação, em magnitude e intensidade das transformações que
as ações humanas geram na paisagem, a morfologia, a morfogênese e a
morfodinâmica antropogeomorfológica ainda recebem pouca atenção. Isso se deve ao
lastro cartesiano que se mantém na dicotomia entre sociedade e natureza da
ciência contemporânea, a partir de abordagens teóricas, conceituais e
metodológicas antagônicas para os fenômenos humanos e o meio físico-biótico. Com
isso, os geomorfólogos, de um modo geral, têm dificuldades em associar o que
ocorre no meio “natural” com as ações humanas (HUPY, 2017).
No dia 05 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, de propriedade da
Mineradora Samarco, no município de Mariana/MG, se rompeu. A estrutura
armazenava cerca de 50 milhões de m³ de rejeitos de mineração e, desses, 34
milhões (68%) foram carreados no rompimento (PINTO-COELHO, 2015). Com a
insuficiência das iniciativas de recuperação ambiental promovidas, esse material
foi incorporado à dinâmica hidrossedimentológica e continua sendo levado em
direção ao mar, por meio do sistema fluvial (MENDES e FELIPPE, 2019) .
A onda de lama percorreu, inicialmente, 2 km até a localidade de Bento
Rodrigues, que foi destruída. Na calha principal do rio Doce, esse material foi
transportado, atingindo progressivamente uma série de cidades até chegar à
localidade costeira de Regência no estado do Espírito Santo. Os rejeitos
oriundos da barragem de Fundão causaram o recobrimento de muitas áreas de
planícies aluviais e baixos terraços, além do assoreamento de diversos trechos
dos cursos hídricos atingidos (MENDES E FELIPPE, 2019).
Segundo o Governo de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2016), 4.238 pessoas foram
diretamente atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, deixando 19 mortos
e amplos danos socioambientais.
Pouco mais de três anos após a tragédia em Mariana, no dia 25 de janeiro de
2019, ocorreu o rompimento da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, da VALE
S.A, localizada no município de Brumadinho, Minas Gerais. Quando isso aconteceu,
a barragem estava com 11,7 milhões de m³ de rejeitos estocados, além dos
inúmeros danos ambientais que se assemelhavam ao rompimento de Fundão, a alta
mortalidade foi o aspecto mais estarrecedor do novo desastre. Foram registradas
270 mortes (FREITAS E SILVA, 2019).
Considerando a relevância desses eventos para a sociedade brasileira e a grande
atenção que receberam pela comunidade acadêmica (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021),
busca-se discutir a inserção da geomorfologia brasileira dentro das questões que
envolvem os dois maiores recentes desastres ambientais.
Material e métodos
Para alcançar essa discussão partiu-se de uma Revisão Bibliográfica Sistemática
(RBS) produzida em um trabalho anterior (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021), que
consiste em uma metodologia de busca, classificação e seleção de produtos
acadêmicos. Nesse caso, a revisão teve como objetivo a compilação das pesquisas
referentes às publicações sobre rompimentos de barragem, com foco em Brumadinho
e Mariana, entre novembro de 2015 e dezembro de 2020. A RBS possibilitou a
percepção da qualidade e relevância das publicações, além das lacunas a serem
preenchidas dentro desse campo de pesquisa de desastres tecnológicos (COSTA,
KNOP, FELIPPE, 2021).
A atual Revisão Bibliográfica Sistemática baseou sua organização na tabela de
áreas do conhecimento do CNPQ, em que Geomorfologia está classificada como
Geografia Física, no grande campo das Ciências Exatas e da Terra, em conjunto
com outras áreas como a Climatologia Geográfica e a Hidrogeografia. Por outro
lado, áreas como a Geografia Política e Econômica estão classificadas como
Geografia Humana, no grande campo das Ciências Humanas.
Neste estudo, foram reunidos 246 trabalhos acadêmicos, obtidos da
plataforma Google Scholar, incluindo artigos publicados em revistas e anais de
eventos, além de dissertações, teses e capítulos de livros. A partir disso,
foram selecionados os que tratam especificamente do tema de Geomorfologia para a
realização de fichamentos. Para a efetuá-los, foram determinados os tópicos:
objetivo, resultado e importância com o intuito de facilitar a identificação dos
textos da temática citada.
Resultado e discussão
Dentre as publicações verificadas, apenas 3% foram classificadas como
Geomorfologia. Algumas instituições de ensino, se destacaram na abordagem
geomorfológica dos desastres, como é demonstrado no quadro 1. Além disso,
observa-se a discrepância na relevância acadêmica entre os trabalhos, informação
avaliada através do número de citações. Alguns registraram mais de 100, enquanto
outros não apresentaram nenhuma. Isso pode ser explicado por alguns fatores:
existe um maior alcance das publicações de língua inglesa na comunidade
científica; o efeito cumulativo de citações, no qual artigos com maior número de
citações tendem a receber maior atenção da comunidade e maior relevância nos
sites de pesquisa, assim fazendo com que esse número suba ainda mais; a
notoriedade do autor, que chama atenção e proporciona um maior número de
citações, independente da real relevância do tema; e as certificações e
indexadores do periódico que foi veículo da publicação.
Observou-se que a temática dos estudos girou em torno principalmente da
Geomorfologia Ambiental (66%), discutindo o papel dos seres humanos na
esculturação do relevo e relacionando os impactos do rompimento na paisagem com
questões socioambientais. Além disso, há pesquisas mais técnicas que discutem
diretamente por meio de seus objetos de estudo, assuntos como a morfologia dos
rios afetados após o desastre ou a granulometria dos sedimentos depositados pela
barragem, trazendo temas relacionados à Geomorfologia fluvial, de vertentes e
costeira. Para o desenvolvimento desses estudos, notou-se a utilização
primordialmente de ferramentas e técnicas de geoprocessamento, que incluiu a
fotointerpretação de imagens de satélite para a identificação de feições
fluviais, dos depósitos de rejeitos e o dimensionamento da área atingida; o
monitoramento da rede de drenagem após os rompimentos para compreender como o
rompimento afetou o trajeto desses rios; cálculos de morfometria para melhor
compreensão de aspectos morfológicos do relevo, como a confecção do perfil
longitudinal dos rios atingidos; e a utilização de softwares como o Google Earth
Pro e o ArcGis para realizar interpretações das imagens orbitais. Os trabalhos
de campo são uma metodologia comum na Geomorfologia e de extrema importância,
mas que ficaram em segundo plano, e envolveram principalmente o reconhecimento
da área e a confirmação dos dados obtidos através de fotointerpretação, isso
pode ser explicado pela falta financiamento para o trabalho de campo nesses
locais. Houve poucos trabalhos que realizaram coleta de dados em campo, pois
esses estudos acabam sendo mais específicos de outras áreas da ciência, porém
por ser um tema muito interdisciplinar, são utilizados de forma secundária.
Os estudos encontrados são variados quanto à extensão espacial de suas
discussões. Enquanto alguns se limitam a localidades afetadas especificas,
outros trazem contextos que transcendem o território diretamente atingido. Nesse
sentido, evoca-se a importância de se compreender a escala geográfica de
abordagem das pesquisas. Partindo do princípio de que o espaço geográfico é uma
realidade concreta, dialeticamente produto e condição da reprodução da
sociedade, a escala deve ser entendida como um filtro, uma lente, que dá
visibilidade à extensão espacial de um determinado fenômeno (CASTRO, 1992) de
cunho político, que define o nível da abordagem espacial (SILVEIRA, 2004).
Analisando os artigos veiculados ao longo destes sete anos que sucedem a
primeira tragédia, observou-se que pouco se pesquisou sobre os aspectos
geomorfológicos. Um dos trabalhos selecionados, por exemplo, tem como objetivo
propor uma reparação das áreas de tecnosolos que, por consequência dos rejeitos
do rompimento da barragem, assumiram uma nova morfologia. Para isso, foram
propostos dois experimentos, mas que não apresentaram resultados(SCHAEFER et al,
2015).
As temáticas ambientais, em sua grande maioria, limitaram-se em mencionar os
danos sem se aprofundar sobre as reais consequências na morfodinâmica dos
sistemas. Percebe-se ainda um foco das pesquisas voltadas para a apropriação dos
desastres para aplicações e testes de metodologias sem considerar propor ou
contribuir com a realidade dos atingidos (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021).
Sob esse viés algumas considerações foram feitas, notou-se a falta de debate
sobre os crimes ocorridos em Brumadinho e Mariana, principalmente no que tange
assuntos relacionados às Ciências da Saúde e Ciências Agrárias, além disso,
observa-se a presença de uma escrita hermética e técnica na maioria dos textos,
o que dificulta a captação de conhecimento pela população atingida. Ademais,
nota-se que há um baixo número de publicações classificadas como alta
relevância, isso é um sintoma do sistema acadêmico atual ter a produtividade
como uma das principais métricas de mérito (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021).
Instituições de ensino e número de citações dos artigos classificados como de Geomorfologia.
Considerações Finais
A Geomorfologia busca respostas relacionadas aos processos de modelagem do
relevo e, pensando nessa temática, o entendimento desses processos após os
rompimentos de barragens de rejeitos é de grande relevância acadêmica e
socioambiental, possuindo um grande poder em auxiliar a tomada de decisão de
órgãos públicos e sanando dúvidas que influenciam diretamente a vida das
populações atingidas.
Buscando questionar quais caminhos ainda faltam a Geomorfologia
explorar, observa-se que pouco abordou-se acerca de toda a dimensão das bacias
atingidas. Além disso, pouco foi pesquisado acerca das mudanças na vazão dos
rios afetados, o assoreamento dos canais , as mudanças na morfologia do relevo e
dos processos morfodinâmicos após o lançamento de tanto material e energia ao
sistema geomorfológico.
A antropogeomorfologia é uma área em ascensão no meio acadêmico
brasileiro, porém seu potencial foi pouco explorado no contexto dos desastres,
por conta da lógica cartesiana instalada na Geografia, que produz uma dicotomia
entre o homem e a natureza.
Por fim, reforça-se a importância de maiores investimentos em pesquisas e
extensão no âmbito geomorfológico relacionadas aos desastres a fim de preencher
as lacunas existentes observadas pelas poucas publicações realizadas
especificamente sobre a temática e ínfimas contribuições desses trabalhos
dentro desse debate tanto para a comunidade científica quanto para os atingidos
pelo rejeito. (COSTA, KNOP, FELIPPE, 2021).
Agradecimentos
À Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora, pelo apoio
financeiro.
Referências
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