Autores
- RAFAEL GUSTAVO GONÇALVES DOS ANJOS BRITO FERREIRAUNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁSEmail: rafaelgustavo@discente.ufg.br
- GUILHERME TAITSON BUENOUNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁSEmail: gtaitson@ufg.br
Resumo
Campos de murundus são feições especiais das áreas úmidas do Cerrado. Este
trabalho buscou identificar ocorrências de campos de murundus associados a
depósitos aluviais do Rio Araguaia em São Miguel do Araguaia/GO, indicar seu
grau de degradação e apontar as principais atividades impactantes.
Classificaram-se as ocorrências em 3 classes de degradação de forma crescente.
Os produtos cartográficos foram gerados por interpretação visual de imagens do
satélite CBERS 4A e delimitação manual de geometrias. Os resultados mostram uma
área total de 93500 ha coberta por campos de murundus, dos quais 31,3% se
encontram conservados, 22,5% moderadamente antropizados e 46,2% degradados.
Também foram medidos 525,257 km de canais artificiais de drenagem e 1.223,544 km
de estradas, 15,152 km de canais destinados à irrigação e 9 pivôs centrais de
irrigação. Os dados do Mapbiomas revelam que 34,8% da área total já foi alterada
pela ação antrópica, onde a maior parte dessa área é ocupada por pastagem.
Palavras chaves
Campos de murundus; Rio Araguaia; degradação; atividades impactantes; CBERS 4A.
Introdução
Campos de murundus são uma forma de microrrelevo comumente associada a áreas
úmidas (AUs), que se caracterizam pela superfície plana, sazonalmente alagada,
sobre a qual se elevam pequenos morrotes de terra (murundus). Estes murundus
proporcionam, portanto, ambientes não alagáveis em meio à área sazonalmente
alagada (SALES, 2021). Sobre os murundus podem se desenvolver espécies arbóreas
e arbustivas, enquanto na superfície entre as elevações a vegetação herbácea é
predominante. A fitofisionomia descrita por Ribeiro e Walter (1998) nestes
ambientes é o Parque de Cerrado.
No Cerrado, as AUs possuem papel fundamental no complexo ciclo hidrológico. Como
o escoamento da água se dá de forma mais lenta nesses ambientes, eles garantem a
perenidade e a vazão de rios durante o período de estiagem. Além disso, eles
proporcionam um ambiente de estabilização e regulação ambiental e de manutenção
da biodiversidade (FONSECA, 2011). Diversos serviços ecossistêmicos são
prestados por esses ambientes, dentre eles se destacam o estoque de carbono, a
recarga de aquíferos, a purificação da água e a manutenção do microclima (JUNK
et al., 2013).
No Estado de Goiás houve discussão sobre o enquadramento dos campos de murundus
na legislação ambiental nas últimas décadas. A lei de n° 16.153 (GOIÁS, 2007),
que dispunha sobre a preservação de campos de murundus no Estado, os definia
como área de preservação permanente (APP), garantindo a entrada dessa formação
na política florestal de Goiás, que foi instituída na lei 18.104 (GOIÁS, 2013).
No entanto, no ano de 2019 foi sancionada a lei de licenciamento ambiental do
Estado n°20.694 (GOIÁS, 2019), a qual revogou o artigo que instituía os campos
de murundus como APP. Em 2020 foi aprovada a lei de n° 20.773 (GOIÁS, 2020), que
revogou a lei anteriormente citada, voltando o status de APP para esta formação.
Em Goiás houve uma iniciativa de mapeamento de campos de murundus em escala
estadual, em uma parceria entre a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) e o Laboratório de Processamento de Imagens
e Geoprocessamento (LAPIG) (IESA-UFG). Este mapeamento demonstrou que a maior
ocorrência dos campos de murundus se encontra na região noroeste de Goiás (SILVA
et. al, 2022), associados aos depósitos aluvionares do Rio Araguaia.
O município no extremo noroeste do estado é São Miguel do Araguaia que, nas
últimas décadas, foi um dos municípios com maior volume de outorga de uso de
água na sua região hidrográfica (PASQUALETTO et al., 2022). Além disso, também
foi implantado nas várzeas do Rio Araguaia, em Luiz Alves, um distrito do
município, um grande projeto de irrigação financiado pelo estado brasileiro, o
Projeto de Irrigação Luiz Alves do Araguaia (PILAA). Este projeto consistiu na
criação de canais artificiais de drenagem em áreas úmidas e implantação de
culturas irrigadas, se utilizando do regime natural de inundação do solo no
local.
Tendo em vista a importância dos campos de murundus para o Cerrado e as
discussões legais acerca dos mesmos, e considerando que “mundialmente, as AUs
pertencem aos ecossistemas mais afetados e ameaçados de destruição pelo homem”
(INAU, 2015), a presente pesquisa visou analisar a antropização nos campos de
murundus ao longo dos terraços e várzeas do Rio Araguaia no município de São
Miguel do Araguaia através da delimitação das áreas de campos de murundus,
classificação dessas áreas quanto à degradação e identificação de atividades
antrópicas altamente impactantes.
Material e métodos
As etapas de processamento de dados, delimitação dos campos de murundus e a
classificação dos mesmos foram efetuadas no software QGIS versão 3.16.16. Dentre
os dados vetoriais, os limites políticos estaduais e municipais foram obtidos do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já os dados de
hidrografia foram obtidos da Agência Nacional de Águas (ANA). Além disso, foi
utilizado o mapeamento de campos de murundus realizado pela Secretaria Estadual
de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) em parceria com o
Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (LAPIG) (SILVA,
2022). Para os dados matriciais foram utilizadas quatro imagens do satélite
CBERS 4A do ano de 2021. As imagens escolhidas são do final do período de chuvas
(04-2021) e do pico do período de estiagem (07-2021). Os mosaicos passaram por
um processo de fusão das bandas multiespectrais com a banda pancromática de alta
resolução, resultando em mosaicos das bandas do espectro visível mais a do
infravermelho próximo, todas com resolução espacial de 2 metros. Além disso,
também foram utilizados dados do projeto MapBiomas, referentes ao uso e ocupação
da terra para o ano de 2020.
A primeira fase do estudo se deu pelo refinamento dos dados obtidos pelo
Relatório técnico do mapeamento de remanescentes de campos de murundus no Estado
de Goiás, realizado pelo Laboratório de Processamento de Imagens e
Geoprocessamento (LAPIG) em parceria com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) para o ano de 2019 (SILVA, 2022). O
refinamento foi realizado através da interpretação visual de imagens, usando
como base as imagens do satélite CBERS 4A. Para auxiliar no processo de
delimitação, foram utilizados os dois mosaicos, uma vez que neles é possível
observar a relação das áreas que são alagadas sazonalmente.
Os campos de murundus foram divididos em classes, tomando como base o
nível de antropização dos mesmos. Os níveis de antropização foram constatados
por análise visual de imagens do satélite CBERS 4A. Para isso foram definidas as
seguintes classes: i) campos de murundus conservados, caracterizados pela
presença de vegetação nativa sobre os murundus e nos espaços entre eles; ii)
campos de murundus moderadamente antropizados, caracterizados pela presença de
vegetação nativa sobre os murundus e cobertura vegetal modificada ou sua
ausência entre os murundus; iii) campos de murundus altamente antropizados, onde
os campos de murundus apresentam-se descaracterizados pela ausência de vegetação
nativa tanto sobre os murundus quanto entre os mesmos ou pelo nivelamento total
ou parcial da superfície decorrente da destruição do microrrelevo.
O Índice de Vegetação por Diferença Normatizada (NDVI) foi utilizado como
auxiliar na análise visual, por ter se mostrado efetivo em trabalhos de
monitoramento desse tipo de ambiente (CARVALHO, 2018; SIMÕES, 2019). O índice
foi fundamental na distinção das classes pela sua relação com o regime de
inundações e com o uso e ocupação da terra.
Para investigar as principais atividades antrópicas impactantes na área de
interesse foram observados e delimitados, por meio de interpretação de imagens
do satélite CBERS 4A, algumas das atividades antrópicas mais severas presentes
nesses ambientes são destacadas por INAU (2015). Dentre eles estão: i) drenagem
da área úmida; ii) construção de hidrovias e rodovias; iii) sistematização de
atividades agrícolas.
Resultado e discussão
A delimitação dos campos de murundus na área de interesse (Figura 1) revelou que
eles cobrem uma área de 93.500,3 ha dentro da área de interesse do estudo, dos
quais 29.308,7 ha são ocupados por campos de murundus conservados, 21.010,7 ha
por campos moderadamente antropizados, e 43.180,9 ha por campos altamente
antropizados. A classe com maior representatividade é a classe altamente
antropizada, que ocupa 46,2% da área total de campos de murundus, seguida pela
classe conservada, com 31,3%, e pela classe moderadamente antropizada, com
22,5%. Essa predominância da classe de maior degradação, especialmente na porção
norte da área de interesse, evidencia o avanço da atividade antrópica sobre
essas áreas úmidas. Os maiores remanescentes das classes conservada e
moderadamente antropizadas se encontram na região centro-leste da área, ao lado
do PILAA. Nesses remanescentes foi possível observar a presença de estradas e
drenos ativos, possivelmente relacionados a fases ainda não implantadas do
PILAA.
O delineamento das atividades antrópicas impactantes presentes na área de estudo
revelou 525,3 km de canais de drenagem artificial (Figura 2), sendo que a grande
maioria deles se encontrava ao longo de estradas rurais e cruzando grandes áreas
de campos de murundus. Além disso, a maioria deles também apresentava bacias de
contenção ao longo dos canais. Para os canais que ocorrem nos dois lados da
estrada foi traçada apenas uma linha para representar o caminho de drenagem. Já
as estradas no local totalizaram 1.223,5 km, em sua grande maioria na forma de
estradas de terra.
O uso e ocupação da área obtido dos dados do MapBiomas (Figura 3) aponta que
72.642,9 ha já foram ocupados por atividades antrópicas, o que representa
aproximadamente 34,8% da área total. Dessa área antropizada, cerca de 83,6%
corresponde a áreas de pastagem, um total de 60.755 ha. Estes dados mostram que
a atividade que tem o impacto mais extenso na região é a pecuária. A agricultura
se concentra nas áreas que foram sistematizadas para esse fim, com a construção
de canais de irrigação e implantação de pivôs centrais de irrigação. Foram
encontrados e delimitados 9 pivôs na região nordeste, total ou parcialmente
dentro da área de interesse, e 150,2 km de canais de irrigação, todos associados
ao PILAA no centro-oeste da área de interesse.
Classe 1: campos de murundus conservados; classe 2: campos de murundus moderadamente antropizados; classe 3: campos de murundus altamente antropizados
Mapa com as estradas, canais de drenagem do nível freático, canais de irrigação e pivôs centrais de irrigação
Mapa de usos e ocupação do solo para o ano de 2020 na área de interesse
Considerações Finais
Constatou-se que, das áreas de campos de murundus, aproximadamente 46,2% já se
encontra em grau crítico de degradação, enquanto os remanescentes de vegetação
nativa nesses ambientes correspondem a 53,8% da área. Além disso, destaca-se que
boa parte das áreas na classe moderadamente antropizada de degradação faz contato
com a classe conservada e com a classe altamente antropizada simultaneamente, o
que pode indicar um avanço gradual sobre essas áreas úmidas.
Com relação às atividades antrópicas impactantes, foi possível observar uma forte
correlação na implantação de estradas e de canais artificiais de drenagem, ambos
presentes em toda a extensão da área da pesquisa, porém com os canais de drenagem
mais concentrados na região norte da área de interesse. Nessa região, a presença
de pastagem e de campos de murundus na classe 3 é mais expressiva. A partir disso,
infere-se que as linhas de drenagem presentes em áreas ainda conservadas possuem o
objetivo de adequar esses locais para implantação de pastagens no futuro.
Apesar disso, a antropização avança sobre estas APPs, com a implementação do PILAA
no centro-oeste e a forte presença de pastagens ao norte, onde campos de murundus
conservados já representam a menor fração do total na área. É necessário manter o
status de APP desses ambientes e, sobretudo, aumentar a fiscalização ambiental, a
fim de não degradar ainda mais a situação dos campos de murundus na região.
Agradecimentos
Referências
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