• 14° SINAGEO – Simpósio Nacional de Geomorfologia
  • Corumbá / MS
  • 24 a 30 de Agosto de 2023

DESAFIOS METODOLÓGICOS NO MAPEAMENTO GEOMORFOLÓGICO DE ÁREAS MONTANHOSAS: APLICAÇÕES NA BACIA DO RIO PASSA QUATRO, SUL DE MINAS GERAIS

Autores

  • IAN COSENZA IRSIGLERUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: irsigler.cosenza@estudante.ufjf.br
  • ROBERTO MARQUES NETOUNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAEmail: roberto.marques@ufjf.br

Resumo

Envolta aos desafios de uniformização metodológica e às profundas variações geomorfológicas da superfície terrestre, a cartografia geomorfológica tem como desafio permanente coadunar algum consenso metodológico e as flexibilidades necessárias para a representação dos diferentes tipos de paisagem. No presente artigo, tal problemática é tratada a partir de paisagens montanhosas com base no mapeamento geomorfológico da bacia do rio Passa Quatro (MG), realizado na escala de 1\50.000. As rotinas metodológicas empregadas foram capazes de diferenciar as organizações geomorfológicas fundamentais entre as áreas montanhosas e as morrarias altimontanas, coadunando a compartimentação geomorfológica segundo tipos genéticos como pano de fundo do mapa, o trato morfométrico associado, e o uso de símbolos para a representação de dados morfodinâmicos e morfoestruturais.

Palavras chaves

Cartografia geomorfológica; montanhas tropicais; morfometria do relevo; maciço alcalino; escarpas estruturais

Introdução

O entendimento conceitual do presente trabalho considera que o relevo montanhoso se consubstancia a partir de amplitudes superiores a 300 metros entre as superfícies somitais e os fundos de vale de referência, tal como considerado em diversas propostas (PONÇANO et al. 1981; NUNES et al., 1994; FARIA, 2005). A aplicação prática aqui apresentada se estabelece no âmbito das montanhas tropicais, cinturões montanhosos na forma de grandes escarpamentos que ocorrem em margens passivas, tal como na margem rifte elevada do sudeste brasileiro e do sudoeste angolano, por exemplo. Os diferentes tipos de paisagem tendem a impor desafios técnicos à cartografia geomorfológica, que deve atender às mais diversas tipicidades e categorias de paisagem, por vezes pautada em uma mesma estrutura metodológica. Paisagens aplainadas de domínios intracratônicos úmidos ou semiáridos, litorais escarpados, litorais de tabuleiros, topografias colinosas de bacias sedimentares, domínios montanhosos em faixas móveis, entre outras, são algumas tipologias de paisagem ocorrentes nos cinturões intertropicais, cada uma delas com morfologias e processos dominantes e\ou específicos forjados em diferentes bases estruturais e com distintas geocronologias. Por conseguinte, a cartografia geomorfológica se vê desafiada a organizar a representação do relevo conforme tais especificidades, adotando as famílias de cores necessárias e as simbologias mais aderentes aos fatos geomórficos que se mapeia. No presente paper, é colocada em debate a cartografia geomorfológica aplicada à paisagens montanhosas, uma das tipicidades de maior valor ambiental e de mais difícil ocupação humana, necessariamente dotada de aptidões e restrições bastante específicas. Considerada a importância da representação cartográfica do relevo para a apreensão das bases físico-territoriais do espaço geográfico e para o planejamento do uso da terra, tomou-se a bacia do rio Passa Quatro como objeto de mapeamento geomorfológico. Localizada no contexto da Serra da Mantiqueira, a segunda e mais elevada linha de escarpamentos da margem rifte do sudeste brasileiro, a bacia em apreço agrega distintas morfologias montanhosas talhadas em diferentes bases geológicas, o que lhe confere uma apreciável representatividade regional.

Material e métodos

A base escalar adotada no presente trabalho foi de 1\50.000, que permitiu, a partir dos procedimentos metodológicos acionados, a representação de diferentes níveis taxonômicos do relevo. A primeira etapa do trabalho consistiu na organização da base de dados que serviu à interpretação e cartografia do relevo. No site da USGS – United States Geological Survey (https://earthexplorer.usgs.gov/) foi coletada a imagem Landsat 7 (bandas 5, 4, 3) com resolução de 15 metros e dados de radar correspondentes ao projeto Shuttle Radar Topography Mission (SRTM), da qual foram extraídas as informações clinográficas e hipsométricas. Os dados litológicos foram obtidos junto ao Projeto Sul de Minas (SOARES et al. 2002), em escala de 1/100.000, e a drenagem e demais informações planialtimétricas foram extraídas da Folha Passa Quatro, disponibilizada no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (https://www.ibge.gov.br/). Para a organização e processamento dos dados, bem como para a geração dos mapas de base, foi lançado mão do software ArcGIS. Os dados SRTM foram interpretados conjuntamente às bases planialtimétricas para uma compartimentação do relevo segundo os padrões de formas semelhantes, conforme proposição de Ross (1992). A folha topográfica serviu ainda para o trato morfométrico necessário para a classificação dos modelados de dissecação, servindo de base para a mensuração da profundidade de dissecação e da dimensão interfluvial. As diferentes categorias concernentes aos dois parâmetros morfométricos retrocitados foram organizadas em conjuntos numéricos de 1 a 5 para composição da matriz de dissecação, quadro que associa o entalhe vertical dos canais (profundidade de dissecação) e a extensão dos interflúvios (a citada dimensão interfluvial), rotina metodológica que já partilha dos expedientes levados a cabo no Projeto RADAMBRASIL (GATTO et al. 1983) e nas proposições de Ross (1992), entre outras. Reconhecidamente, os valores mais baixos definem entalhe vertical menos pronunciado e inteflúvios mais extensos, condição esta que aponta para organizações geomorfológicas de baixa energia. No campo oposto, valores altos indicam entalhe fluvial mais pronunciado, e valores mais baixos de dimensão interfluvial indicam a presença de interflúvios estreitos, com proximidade das linhas erosivas, o que sugere um relevo de elevada energia, que associa, naturalmente, vales incisos e profundos e divisores estreitos em franca retração erosiva. Definidos os encaminhamentos morfológicos e morfométricos, as unidades de relevo foram separadas segundo os tipos genéticos encontrados na área, quais sejam: modelados de agradação (A) e modelados de dissecação (D). Na legenda, as letras maiúsculas usadas para representar os diferentes grupos morfogenéticos foram acompanhadas de letras minúsculas indicadoras das formas de relevo dominantes associadas na unidade de mapeamento em questão. A implementação dos valores de profundidade de dissecação e dimensão interfluvial junto às letras-símbolo completou a simbologia alfanumérica que foi plotada nas suas respetivas unidades de relevo, associando gênese, morfologia e morfometria. Informações de cunho morfoestrutural e morfodinâmico foram agregadas ao mapa com o uso de símbolos próprios. A representação simbolizada do relevo é um recurso gráfico que já dava a base para proposições metodológicas antigas, nucleando o sistema de Tricart (1965), sendo também adotada em diferentes esquemas metodológicos que balizam a cartografia geomorfológica internacional (VERSTAPPEN, 1983; GUSTAVSSON et al., 2006) e nacional (NUNES et al. 1994; CUNHA, 2011).

Resultado e discussão

O quadro físico de Passa Quatro se divide elementarmente pelo relevo, que distingue as superfícies altimontanas das cimeiras da Serra da Mantiqueira e escarpas de falha associadas, das morrarias intermontanas interceptadas pelos principais níveis de base regionais. Tal divisão reflete os grandes arranjos regionais de paisagem, discernindo um degrau superior (SAADI, 1991), também designado por Geossistema da Alta Mantiqueira (MARQUES NETO, 2021), e uma sequência de patamares escalonados dissecados em morros convexos e alongados que se arranjam em significativo controle estrutural até os contatos tectônicos com o Planalto do Alto Rio Grande. Correspondem ao degrau intermediário de Saadi (1991), que se relaciona ao Geossistema dos Patamares Escalonados da Mantiqueira interpretados por Marques Neto (2021). Ainda, um mapa geológico foi elaborado para a interpretação do relevo (figura 1). A bacia do rio Passa Quatro reflete aspectos regionais cujos terrenos albergam as aludidas organizações geomorfológicas. O mapa geomorfológico da figura 2 e sua legenda (figura 3) trazem tais distinções, bem como diferentes fatos geomórficos que desvelam as tipicidades internas à bacia. Os domínios altimontanos são dados pelas cristas escarpadas fundamentalmente gnáissicas da Megassequência Andrelândia (Neoproterozoico) (SOARES et al. 2002) mas também pelas estruturas montanhosas talhadas nas intrusões batolíticas em nefelina-sienitos que intrudiram a crosta pré-cambriana entre o Cretáceo Superior e o Paleoceno, e cuja evolução morfológica definiu corpos montanhosos dissecados por drenagem radial separados por brecha de falha em dois maciços congêneres: maciço alcalino do Itatiaia e de Passa Quatro. Define-se aqui a diferenciação fundamental nos sistemas geomorfológicos altimontanos, que no batólito alcalino tipifica um relevo circular radialmente dissecado e de altitude extrema no âmbito das margens passivas em função de componentes tectônicos (CHIESSI, 2004) associados à maior resistência dos sienitos, atingindo 2798 metros na Pedra da Mina. Nos domínios gnáissico-graníticos regem formas escarpadas forjadas em relevos alongados correspondentes a importantes falhas regionais, dissecados por drenagem em padrão dominantemente paralelo a subparalelo convergentes a vales incisos adaptados às linhas de falha. Essa diferença estrutural implica em distinções muito mais de ordem morfológica do que morfométrica, uma vez que o entalhe vertical é profundo nas duas estruturas, bem como os padrões de declividade. As áreas altimontanas também apresentam morfologias agradacionais na forma de planícies alveolares. Essas zonas de estocagem sedimentar suspensas tem sido relacionadas na região à atividades tectônicas (SANTOS, 1999; CHIESSI, 2004; MARQUES NETO; PEREZ FILHO, 2013; SILVA, 2023). Ocorrem associadas ou não a morros altimontanos, que avultam de forma também descontínua. Na bacia do Passa Quatro, as mamelonizações localizadas são restritas às cristas de estrutura gnáissico-graníticas, ausente nos relevos em rochas alcalinas, onde o reafeiçoamento das escarpas é mais restrito e resulta, quando muito, na formação de degraus. Nos níveis intermontanos do rio Passa Quatro, o grau de dissecação é variável, consorciando morros medianamente dissecados (entalhe vertical entre 200 e 300 metros) e fracamente dissecados (entre 100 e 200 metros), além de pequenos morrotes. Além dos níveis de base locais em ambientes altimontanos, o rio Passa Quatro partilha de um dos principais níveis de base regionais, posicionado ao redor de 900 metros de altitude, na coalescência das planícies fluviais dos rios Passa Quatro, Capivari e Verde. As morrarias intermontanas tem uma disposição pronunciadamente linear definida no eixo central da bacia, onde morros paralelos circundam o rio Passa Quatro, sugerindo um alinhamento de falha ao qual o canal se adapta e retrocede sua vaga erosiva até a linha interfluvial, chegando a capturar extensões de canais que drenavam para a bacia do rio Paraíba do Sul. A conexão com os ambientes altimontanos é mais abrupta na parte alta do vale do rio Passa Quatro e mais suavizada na porção média da bacia, onde os desníveis altimétricos são mais graduais e intermediados por patamares. Pelas duas margens, os patamares marcam um franco estreitamento da bacia, fazendo com que as conexões entre os interflúvios e o nível de base do rio Passa Quatro fiquem muito mais diretas. No mapa e na sua respectiva legenda, as organizações geomorfológicas acima apresentadas foram dispostas a base de uma diferenciação elementar entre tipos genéticos denudacionais e agradacionais. Sobre o mapa, as diferenciações morfológicas representadas foram baseadas nas cores atribuídas aos diferentes polígonos representativos dos padrões de formas semelhantes (sensu ROSS, 1992). A integridade morfográfica foi completada com os dígitos correspondentes à morfometria (dimensão interfluvial e profundidade de dissecação) e sua matriz de dissecação. Conforme a legenda do mapa, os tipos genéticos e modelados associados, mapeados a partir destas rotinas metodológicas mais recorrentes e consagradas, foram organizados segundo os níveis pelos quais são reconhecidos na paisagem. Considerou-se, portanto, um primeiro nível de abordagem no mapeamento pautado na compartimentação morfológica, no trato morfométrico associado, e na adequação dos resultados segundo as tipicidades montanhosas regionais, onde a distinção de níveis topográficos é providencial e necessária. A representação das formas e padrões de formas de relevo devem ser priorizadas com hierarquia pela cartografia geomorfológica. As cores preenchem parcialmente a área do mapeamento, diferenciando as morfologias, além de espacializar as formas de maneira resoluta, admitindo uma leitura mais clara e fluida, potencializando seu uso para a gestão do território. Os dígitos numéricos associados à matriz de dissecação complementam o mapa com informações importantes acerca do quadro morfodinâmico vigente, permitindo conjugar as formas à energia do relevo associada. A seguir, o segundo nível da abordagem metodológica resultou em informações complementares representadas pelos símbolos a elas atribuídos. Garantindo a espacialidade das formas e de sua base morfométrica, variáveis por sua vez determinantes para a energia do relevo, outros fatos geomórficos de interesse podem ser representados pelo uso de símbolos lineares e pontuais, uma tradição em diversas propostas metodológicas da cartografia geomorfológica (TRICART, 1965; GUSTAVSSON et al., 2006), e tratada como um nível de abordagem específico na proposição metodológica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1994). No presente trabalho, a inserção de fatos geomórficos a partir de símbolos gráficos lineares e pontuais serviu para realçar elementos estruturais e tectônicos que auxiliaram a interpretação do quadro geomorfológico em apreço. Os símbolos lineares foram acionados para representar escarpas de falha e escarpas estruturais, uma opção que reforça a diferenciação entre os compartimentos montanhosos e reconhece as escarpas eminentemente morfotectônicas daquelas preservadas pela maior resistência das rochas alcalinas, apesar de influências tectônicas também afetarem o maciço. Também foram representados os copiosos vales tectono-estruturais, muitos deles relacionados aos escarpamentos. O uso de símbolos lineares é essencial em sistemas geomorfológicos fortemente controlados, nos quais os elementos retilíneos do relevo e da drenagem são conspícuos. Os símbolos pontuais foram acionados para sublinhar alguns aspectos morfogenéticos. O mapeamento de capturas fluviais e segmentos de interflúvio rebaixados são processos valiosos para a interpretação da morfogênese interfluvial, trazendo informações relevantes para a compreensão da evolução da bacia. Sobretudo na alta bacia, capturas consumadas e rebaixamento dos divisores estão claramente relacionados a alinhamentos estruturais, como pode ser observado no mapa.

Figura 1

Bacia do rio Passa Quatro (MG): localização e base geológica.

Figura 2

Bacia do rio Passa Quatro (MG): mapa geomorfológico.

Figura 3

Legenda do mapa geomorfológico da bacia do rio Passa Quatro (MG).

Considerações Finais

Para o reconhecimento da espacialidade do relevo em regiões de topografia acidentada, tal como se verifica na região dos grandes escarpamentos do sudeste brasileiro, a diferenciação de níveis topomorfológicos é fundamental, diferenciando-se os tipos genéticos ocorrentes em cada nível, bem como os níveis de base locais e\ou regionais que controlam as organizações erosivas e deposicionais em cada nível. Nessa linha, a estandardização das abordagens metodológicas para a cartografia geomorfológica consagradas na cultura geográfica brasileira se mostraram flexíveis ao ponto de atenderem às especificidades dos tipos de paisagem em apreço sem que as linhas gerais dos modelos tenham sido pervertidas. Ao procurar dialogar de forma estreita com as tipologias paisagísticas cujo relevo está sendo mapeado, a cartografia geomorfológica consegue promover um enquadramento mais preciso do relevo na paisagem, aproximando-se das concepções sistêmicas na medida em que a preocupação com as relações e com o conjunto do espaço geográfico são colocadas em pauta. Na bacia do rio Passa Quatro, indefectivelmente, os diferentes níveis geomorfológicos cartografados são aderentes às divisões regionais do relevo e da paisagem, conforme argumentado ao longo do artigo e reafirmado no fecho do presente paper. Dessa forma, o trato cartográfico empreendido também se mostrou proficiente em articular a escala de semidetalhe que pautou o mapeamento às organizações geomorfológicas regionais.

Agradecimentos



Referências

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