Autores

Lupinacci, C.M. (UNESP)

Resumo

Os morros testemunhos constituem-se em relevos residuais normalmente interpretados pela bibliografia como registro do recuo do front de cuestas. No estado de São Paulo, os processos envolvidos nesse recuo e na origem desse tipo de morro têm sido discutidos, apontando para a interação entre processos tectônicos e erosivos. Nesse contexto, o objetivo desse trabalho foi analisar um conjunto de morros testemunhos presentes na bacia do rio Passa-Cinco e compará-los a outros, já estudados, que caracterizam o relevo de cuestas no interor de São Paulo, na região da bacia do rio Corumbataí. Para atingir tal objetivo, foram realizados os seguintes procedimentos: mapeamento dos lineamentos em escala de 1:50.000, trabalhos de campo e análise correlativa entre dados obtidos com esses procedimentos e aqueles de mapeamentos geológicos da área, obtidos a partir de pesquisa bibliográfica. Os dados obtidos permitam constatar que há uma variedade de morfologias dos morros testemunhos estudados as quais se devem tanto a ações tectônicas diferenciadas, quanto a diversificadas fases de criação dos cut offs que isolam tais feições do relevo.

Palavras chaves

Mapa de Lineamentos; falhas; erosão

Introdução

Segundo Goudie (2004), há uma série de teorias sobre a evolução de formas de relevo caracterizadas como cuestas. A ênfase maior dessas teorias refere-se à erosão fluvial diferencial em estrutura monoclinal, a qual dinamiza o desgaste das áreas com menor resistência litológica, criando condições para que as camadas mais resistentes preservem o topo e reverso da forma dissimétrica. Assim, tem-se a organização dos setores de front e reverso, assim como de talus e a depressão ortoclinal nos setores já erodidos e portanto menos resistentes. Entende-se que a erosão fluvial diferencial, portanto, ocorre tanto em função de diferenças na constituição litológica das formações sedimentares monoclinais, como em função da presença de falhas e fraturas que podem servir de caminho preferencial a tais fluxos e processos erosivos. Assim, na visão de Goudie (2004 p.207) as cuestas constituem verdadeiro exemplo de forma de relevo em que se combinam estruturas cujas características permitem sua evolução. No caso do sistema de cuestas do interior do estado de São Paulo, os trabalhos clássicos de Ab’Sáber (1949), apontavam que as ações denudacionais, vinculadas a circundesnudação, foram inicialmente apontadas como responsáveis pelo marcante front cuestiforme que domina o relevo do interior paulista. Penteado (1976) considerava a necessidade de investigações mais detalhadas sobre a questão, apontando para uma possível origem tectônica-denudativa. Fancicani (2000) já destacava, em escala regional, a importância das feições ligadas a tectônica para o entendimento desse relevo de cuesta. Neste contexto, os diversos autores apontam a presença dos morros testemunhos como feições agregadas a evolução cuestiforme. Portanto, esse trabalho tem como premissa que tais morros, além de testemunharem posições do passado do front cuestiforme, também representam situações em que o estudo do cut off, isto é, do setor de rompimento entre front e morro, pode evidenciar a combinação apontada por Goudie (2004) entre ações climáticas e tectônicas na elaboração desse tipo de relevo. Assim, o objetivo desse trabalho é analisar um conjunto de morros testemunhos presentes na bacia do rio Passa-Cinco e compará-los a outros (CUNHA, 2014) que caracterizam o relevo de cuestas no interor de São Paulo, na região da bacia do rio Corumbataí. A área drenada pelo rio Passa Cinco, foco desse trabalho, é marcada pela presença de 5 morros testemunhos: um destes no formato de mesa, com topo amplo e aplainado, e os demais de topo em crista ou pontiagudos, circundados por vertentes íngremes.

Material e métodos

Para atingir o objetivo proposto, foram utilizados os seguintes procedimentos: mapeameno dos lineamentos, trabalhos de campo e análise correlativa entre dados obtidos com esses procedimentos e aqueles de mapeamentos geológicos da área, obtidos a partir de pesquisa bibliográfica. O mapa de lineamentos corresponde à identificação de feições lineares, as quais atuam como condicionantes da evolução do relevo. Hubp (1988) define lineamentos como elementos do relevo condicionados pela atividade endógena, dispostos em uma direção dominante. De acordo com Facincani (2000, p. 17) “O princípio da análise baseia-se na premissa de que muitas estruturas profundas podem ser refletidas em superfície e podem, portanto, ser mapeadas”. A identificação dessas feições pode ser feita a partir da análise de fotografias aéreas, imagens orbitais e cartas topográficas, a partir da observação de formas de relevo e de drenagem retilíneas ou anômalas, ou também em descontinuidades estruturais (FACINCANI, 2000). Para a elaboração desse mapeamento, utilizaram-se as informações vetoriais do limite da bacia, a drenagem enriquecida, pontos cotados e curvas de nível, sendo as duas últimas com os valores altimétricos. Essas informações foram obtidas a partir das folhas topográficas de Rio Claro (SF–23-M-i-4) e Itirapina (SF-23-M-i-3), na escala de 1:50.000, fornecidas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A drenagem enriquecida corresponde ao sistema de drenagem onde foram adicionados manualmente novos canais indicados por pelo menos três curvas de nível (60 metros de desnível) que apresentavam crenulações, apontando para extensas concavidades, as quais, em campo, normalmente apresentam sistemas fluviais desenvolvidos. A partir dessa base cartográfica, foram identificados e traçados lineamentos segundo 3 critérios, gerando assim, 3 classes de lineamentos. As duas primeiras correspondem a retilinidades e acotovelamentos presentes no traçado da drenagem, sendo diferenciados pela ordem do canal fluvial, individualizando-se os lineamentos em canais de primeira ordem e os lineamentos em canais de segunda ordem e superiores. Essa diferenciação busca hierarquizar, a partir da drenagem, as quebras existentes na estrutura litológica da área. Assim, os canais de primeira ordem tendem a refletir lineamentos menores e, os de ordem superior, os lineamentos de maior vulto. Ainda, como terceira classe, foram adicionados os lineamentos identificados por Facincani (2000) na área de estudos desse trabalho. Os lineamentos de primeira ordem correspondem àqueles traçados sobre os canais de primeira ordem, os lineamentos de segunda ordem ou mais são aqueles traçados sobre os canais de segunda ordem ou de ordens superiores. Esses lineamentos foram identificados a partir da análise da base cartográfica em escala 1:50.000 e traçados quando identificados canais fluviais com relativamente longa extensão linear, o suficiente para sugerir uma influência de fatores estruturais sobre a organização da drenagem, ou com cotovelos, isto é, trechos com curvas próximas a 90 graus. Por fim, os lineamentos identificados por Facincani (2000) foram adicionados ao mapa. Para isso, foi escaneado o mapa intitulado: “Mapa Morfotectônico”, elaborado pela autora durante a produção de sua tese de doutorado (2000) e esse foi adicionado à plataforma do projeto no ArcGis e sobreposto ao mapa. Assim, foram traçados os lineamentos identificados pela autora, concluindo o mapa de lineamentos. Os trabalhos de campo foram realizados a fim de reambular o mapeamento realizado, assim como investigar a morfologia dos morros e o traçado das drenagens de seu entorno.

Resultado e discussão

A alta bacia do rio Passa Cinco é marcada pela presença de morros testemunhos diferenciados, tanto morfologicamente, em termos de dimensões e forma, como em seu posicionamento, sendo alguns mais próximos ao front cuestiforme e outros bem mais distantes (Figura 1). A partir da análise do entorno dos morros da Guarita e do Bizigueli, (Figura 2) observa-se uma densa rede de drenagem ao redor desses. Em especial, a SW do morro do Bizigueli, nota-se altos valores de densidade drenagem, sentido onde o morro tem maior proximidade com o front cuestiforme (Figura 1). Dessa forma, a intensa densidade de drenagem neste ponto sugere um alto grau de atuação dos processos erosivos, os quais agem de forma mais eficiente em função dos lineamentos, levando à separação desses morros do front da cuesta. Notam-se também, a partir da análise do mapa de lineamentos (Figura 1), dois grandes lineamentos identificados por Facincani (2000) sob a drenagem principal. Essa associação sugere que a instalação dessa densa rede de drenagem sobre esse local tenha sofrido forte influência tectônica. Fancicani (2000) caracteriza o morro do Bizigueli como um shutter ridge que acompanha o plano de falhamento no qual o rio Passa Cinco encontra-se encaixado, fato demonstrado pelas diversas mudanças bruscas de rumo que as drenagens afluentes desse rio apresentam quando da confluência (Figura 2). Quanto à relação entre o morro do Bizigueli e da Guarita, a proximidade entre esses sugere que já estiveram juntos, porém agora estão em processo de separação devido aos agentes erosivos, com dois canais fluviais se desenvolvendo entre esses, cujos cursos demonstram claramente a presença de lineamentos os quais dinamizam tal atividade erosiva. É interessante notar que o morro da Guarita tem fisionomia típica de escarpas de falha triangulares, morfologia que se repete em diversos setores do seu sopé. Os demais morros testemunhos, Pelado, Baú e sem nome, apresentam feição típica de facetas trapezoidais em escarpas de linha de falha (Figura 3) Quanto aos morros Pelado e do Baú, esses se encontram separados pelo rio Pirapitinga, que apresenta, nesse ponto, diversas inflexões que caracterizam significativa influencia de lineamentos (Figura 4). Ainda, convém destacar a proximidade significativa de afluentes do rio Piratininga com o curso principal do rio Jacaré-Guaçu, demonstrando situação que pode vir a convergir para uma captura de drenagem. Por fim, quanto ao morro testemunho sem nome, identificado pelos mapeamentos, tem-se um caso onde sua proximidade com o front cuestiforme sugere uma separação recente e ainda em processo. Registra-se a presença de nascentes de dois cursos de água cujos cursos retilíneos remetem a possível ação tectônica criando o cut off que separa o referido morro do front (Figura 1). Com o recuo de cabeceira dos referidos cursos de água, cujos trajetos retilíneos apontam para ações tectônicas, haverá um significativo aumento da atividade erosiva e, consequentemente, maior velocidade na separação entre morro e front. Essa situação assemelha-se aquela encontrada por Cunha (2014) na região de Analândia que se localiza ao norte da área estudada. Nessa área, assim como na bacia do Passa Cinco, foram registrados esporões dissecados por sistemas de drenagem cuja retilinidade também denota a presença de estruturas falhadas. As nascentes desses sistemas, assim como ocorre na área foco desse trabalho, são marcadas por amplas concavidades de vertente que denotam a presença de fraturamentos transversais os quais facilitam a erosão e a presença desse tipo de feição. O mapeamento dos lineamentos apresentado nesse trabalho permitiu verificar uma presença constante dessas feições as quais facilitam a atividade erosiva dos sistemas fluviais, facilitando a criação cut offs e a separação de setores do relevo cuestiforme que passam a se caracterizar como morros testemunhos. Assim, conforme aponta a bibliografia (GOUDIE, 2004), a erosão fluvial diferencial torna-se importante processo evolutivo que deve ser considerado na avaliação dos relevos de cuesta.

Figura 1

Mapa de lineamentos da bacia do rio Passa Cinco (SP)

Figura 2

Cotovelos de drenagem e lineamentos nas proximidades dos Morros da Guarita e Beziguelli.

Figura 3

Feições triangulares e trapezoidais em morros testemunhos. Fotos de Tissiana de Almeida Souza

Figura 4

Interfluvio estreito entre a bacia estudada e a vizinha, indicando possível ação tectônica.

Considerações Finais

No caso da bacia do Rio Passa Cinco, os morros testemunhos tem morfologias e posicionamentos variados em relação ao front que indicam diversificados efeitos das ações tectônicas, assim como diferentes momentos de gênese dessas feições. Dessa forma, o morro da Guarita e Biziguelli (Figura 1) encontram-se isolados e distantes do front, separados por amplo lineamento reconhecido pela bibliografia e no qual se encaixa o vale do Rio Passa Cinco. Constituem feição do tipo shutter ridge e apresentam morfologia local, com feições triangulares e trapezoidais, que comprovam sua evolução a partir de erosão típica em plano de falha. Já o morro Pelado e do Baú, mais distantes do front, foram isolados por sistemas de drenagem (Pirapitinga e Jacaré Guaçu) cuja proximidade de nascentes indicam possíveis capturas as quais, tradicionalmente, caracterizam ambientes de ampla influencia de ações tectônicas. Por fim, o morro sem nome, muito próximo ao front, em processo ainda de individualização, por seu posicionamento, indica fase mais atual de erosão fluvial diferencial, indicando que é possível apontar para a hipótese de várias fases erosivas que isolaram os morros analisados. Ainda, considera-se importante apontar a necessidade de novos estudos, com datações dos materiais coluviais do sopé dos morros a fim de compreender a complexidade envolvida na esculturação dessas formas de relevo.

Agradecimentos

Agradecemos à FAPESP pelo apoio financeiro, processo n. 2016/25231-3

Referências

AB’SÁBER, A. N. Regiões de circundesnudação Pós-Cretácea no Planalto Brasileiro. Boletim Paulista de Geografia. São Paulo, n. 1, p. 3-21, março/1949.
CUNHA, C. M. L. A influência da morfoestrutura na disposição de morros testemunhos: O caso do setor de cuestas de Analândia (SP). Revista Geonorte. , v.10, p.105 - 110, 2014
FACINCANI, E.M. Morfotectônica da depressão periférica paulista e cuesta basáltica: regiões de São Carlos, Rio Claro e Piracicaba, SP. 2000. 222 f. Tese (Doutorado em Geologia Regional) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2000.
GOUDIE, S (ed.) Encyclopedia of Geomorphology – vol 1. London: Routledge, 2004. 1156 p.
HUBP, J. I. L. Elementos de Geomorfologia Aplicada (Metodos Cartograficos). Mexico, D. F.: Instituto de Geografia, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1988. 128 p.
PENTEADO, M. M. Geomorfologia do setor centro-ocidental da Depressão Periférica Paulista. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1976. (Série Teses e Monografias, n.22).