Autores

Silva, J.V.M. (UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI) ; Moura Fé, M.M. (UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI)

Resumo

Entender a relação entre natureza e cultura, mais especificamente a influência da geodiversidade sobre o patrimônio cultural, requer o desenvolvimento de um roteiro teórico-metodológico. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é identificar a relação da geodiversidade com o patrimônio cultural dos municípios que compõem o “território” do GeoPark Araripe. Metodologicamente foram desenvolvidas atividades em gabinete e campo, cujos resultados propiciaram a proposta inicial de categorias de análise da Geocultura (para o patrimônio cultural e para a geodiversidade), as quais foram aplicadas no GeoPark Araripe. Nesse roteiro a 1ª etapa passa pela identificação, tendo o inventário como ferramenta importante; na 2ª etapa tem-se a análise específica da relação entre geodiversidade e cultura, a priori, utilizando as categorias de análise propostas. O aprofundamento dessa proposta teórico-metodológica se apresenta como tema das próximas etapas da pesquisa.

Palavras chaves

Patrimônio; Geoconcervação; Geoparques

Introdução

Dentre as diversas características da região sul do Ceará, mais conhecida como Cariri cearense, tem-se como um dos principais destaques a significativa geodiversidade, presente na geologia (e paleontologia) da bacia sedimentar do Araripe, bem como na geomorfologia da chapada do Araripe. Em paralelo, a região se destaca também pelo notório patrimônio cultural e suas inúmeras manifestações. Essa chapada configura-se como um relevo elevado em relação ao seu entorno, possuindo de 800 a 950 metros de altitude, modelado por rochas sedimentares, abrangendo os estados do Ceará, Piauí e Pernambuco (BRANDÃO; FREITAS, 2014). No seu entorno localizam-se os municípios do Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri, os quais, devido seu reconhecido patrimônio natural fazem parte do denominado “território GeoPark Araripe”, recorte espacial deste trabalho, região conhecida também por seu significativo patrimônio cultural. Esse valor cultural, muitas vezes, se baseia nas relações que existem entre sociedade e natureza, notadamente ao possuir sua gênese no processo de ocupação de um determinando espaço e uso de sua matéria prima, para a sobrevivência (MOCHIUTTI et al., 2012). Isso permite afirmar que o valor cultural, originado a partir da ação humana, terá influência do que o meio natural lhe proporcionará, implicando em “o quê” e “como” as pessoas usam a natureza como matéria prima em suas construções materiais e/ou inspirações imateriais. A relação de uso do meio natural para ocupação e sobrevivência em um dado espaço sempre existiu, como afirma Gonçalves (2008, p.172): O homem arrancou os deuses da natureza e passou a destruí-la como se ele próprio fosse divino, cheio de poderes absolutos. A partir de então, a natureza começou a perder o seu status de mãe da vida. O desejo desenfreado pelo poder e pelo dinheiro, fez com que o homem mudasse sua concepção como parte do natural. (GONÇALVES, 2008, p. 172) Dessa forma, a extração de matérias primas proporcionou à sociedade construir bens materiais cada vez mais sofisticados, moldando ainda valores imateriais, que são, cada um ao seu modo, dotados de significados, memórias, histórias, vivências e emoções, dando a diferentes grupos sociais, identidades particulares. Os patrimônios culturais originados a partir do meio natural não se circunscrevem apenas a bens materiais, construídos socialmente, mas também ao meio ambiente e à natureza, fazendo-se, assim, presente nas mais diversas formas de manifestações imateriais. Aliás, “a percepção da herança imaterial torna-se fundamental para a integração da população com suas próprias condições de existência, com a natureza e o meio ambiente” (PELEGRINI, 2016, p.126). Isso permite dizer que o surgimento de bens materiais e imateriais diante do que a natureza, especificamente a geodiversidade local, oferecia em um determinando momento da história, proporcionou às pessoas criar seus valores culturais, suas identidades particulares e sua forma de viver, por vezes, totalmente distinta de outras localidades. Mas como entender de forma mais clara essa relação entre natureza e cultura? Como estabelecer cientificamente um roteiro teórico-metodológico para analisar a influência da geodiversidade sobre o patrimônio cultural? Com base nessas questões e nos resultados apresentados em Moura-Fé et al. (2017), o objetivo deste trabalho é identificar a relação da geodiversidade com o patrimônio cultural dos municípios que compõem o “território” do GeoPark Araripe, Ceará.

Material e métodos

Geocultura foi conceituada como um ramo científico com base no arcabouço teórico geográfico, que estude a geodiversidade e seus segmentos: geoconservação, geoturismo e geoeducação, com ênfase na influência que as rochas, os minerais, os fósseis, as formas relevos, as geoformas e os solos tiveram e têm sobre as manifestações culturais humanas, sejam elas materiais ou imateriais, as implicações associadas e suas possíveis aplicabilidades (MOURA-FÉ et al., 2017, p. 3067). Todavia, diferentemente da geografia cultural, que apresenta no seu bojo teórico específico uma abordagem cultural da relação entre natureza e sociedade, dando mais ênfase nas marcas sociais na natureza; a geocultura, conforme Moura-Fé et al. (2017) busca analisar a influência da natureza sobre a cultura, seja ela material ou imaterial. Por fim, em termos de prognóstico, os autores apontaram dois ramos que se desdobram a partir desse contexto: 1) o desenvolvimento teórico do conceito de geocultura, com; 2) o desenvolvimento de métodos e técnicas que proporcionem a sua aplicabilidade, o que pode ser facilitado no contexto territorial do Cariri cearense. Esses desdobramentos prognósticos embasaram o objetivo deste trabalho, já apresentado anteriormente, ou seja, fazer avanços teóricos, mas, em paralelo e de forma complementar, propor um roteiro teórico-metodológico de análise e de busca pela aplicabilidade, tendo como escolha para esse “passo adiante” o território do GeoPark Araripe. Buscando atingir esse objetivo, a natureza da pesquisa fundamentou-se em uma abordagem de cunho qualitativo que, de acordo com Gil (1996), visa a compreensão ou interpretação de processos de forma complexa e contextualizada e se caracteriza como um plano aberto e flexível. Quanto aos fins esta investigação se caracterizou como descritiva. No tocante às técnicas de pesquisa, os procedimentos desenvolvidos foram baseados, inicialmente, em um criterioso levantamento bibliográfico, com a realização de um estudo sistematizado, investigando materiais publicados em periódicos de revistas científicas estrangeiras e nacionais, em livros e títulos legais vigentes no Brasil e no estado do Ceará, sobretudo sua região sul, com levantamento dos principais referenciais teóricos e metodológicos pertinentes ao objetivo proposto. Na sequência foram feitas leituras e análises conjuntas da literatura científica selecionada, visando o domínio do arcabouço teórico pertinente. Dominados os conceitos, foram feitas a identificação e caraterização básicas e iniciais de categorias de análise para buscar a correlação entre geodiversidade e geocultura, considerando, vale frisar, elementos locais e pertinentes à área de estudo. De forma concomitante à essa etapa de gabinete, foram desenvolvidas atividades na etapa de campo realizadas em diversos momentos ao longo dos últimos meses, cujos dados e informações coletadas foram significativas para o alcance e discussão dos resultados, apresentados na sequência.

Resultado e discussão

Propor entender as relações estabelecidas entre natureza, sociedade e suas manifestações culturais requer, de fato, uma análise minuciosa, principalmente quando tem-se em foco observar como o meio natural pode contribuir e proporcionar o surgimento / desenvolvimento de diversas formas de culturas e tradições, sejam elas expressas de forma material ou imaterial. Todavia, para tal, entende-se que alguns conceitos devam ser apresentados. Conceituando: Conceitualmente, a geodiversidade é o resultado da interação de diversos fatores, como as rochas, o clima, os seres vivos, entre outros, possibilitando o aparecimento de paisagens distintas em todo o mundo (BRILHA, 2005), integrando a diversidade geológica, geomorfológica e pedológica, além dos processos que lhes originaram (BÉTARD et al., 2011) e lhes modelam de forma dinâmica (MOURA-FÉ, 2015). De forma ampla, por sua vez, patrimônio é um conceito legal relacionado ao conjunto de bens e direitos de uma pessoa ou instituição, é produto de uma escolha e essa depende do que é considerado como significativo para a sociedade. Nesse sentido, “(...) vão ser os valores atribuídos às coisas e lugares que vão dar um significado a tais coisas e lugares em relação a outros, o que os transformam em ‘patrimônio’” (CASTRIOTA, 2004, p. 24). O processo de “patrimonialização” tem correlação direta com a preocupação das pessoas em conservar algum aspecto cultural e/ou natural (BENTO e RODRIGUES, 2011). Por sua vez, o artigo 216 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) conceitua patrimônio cultural como sendo os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. De forma geral, patrimônio cultural pode ser compartimentado em: patrimônio material e patrimônio imaterial, conforme o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Aliás, foi a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), em seus artigos 215 e 216, que ampliou a noção de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial e, também, ao estabelecer outras formas de preservação, tais como o Registro e o Inventário, além do Tombamento, instituído pelo Decreto-Lei nº. 25, de 30 de novembro de 1937, que é adequado, principalmente, à proteção de edificações, paisagens e conjuntos históricos urbanos (IPHAN, 2017). Sendo assim o patrimônio material protegido pelo Iphan é composto por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza, conforme os quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Os bens tombados de natureza material podem ser imóveis como as cidades históricas, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; ou móveis, como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos (IPHAN, 2017). Por outro lado, nota-se que os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares que abrigam práticas culturais coletivas. Além disso, o patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (IPHAN, 2017). Dessa forma, esse conjunto de conceitos importantes, considerando a importância do Iphan, responsável pela preservação do acervo patrimonial material e imaterial do país, passa a ser o quadro inicial de categorias de análise da Geocultura (Quadro 1), resultados iniciais da pesquisa: Inventariando: Um segundo passo necessário está na análise espacial da área de estudo, ou seja, os municípios que compõem o GeoPark Araripe (Figura 1), a saber: Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri. O Geopark Araripe, primeiro geoparque das Américas e do hemisfério sul com selo da UNESCO e componente da Rede Global de Geoparques (Global Geoparks Network – GGN), foi criado em 2006 e situa-se na região sul do Ceará, no contexto geológico da bacia sedimentar do Araripe e geomorfológico da Chapada do Araripe (MOURA-FÉ, 2016). Como método inicial de inventariação do patrimônio cultural dos municípios que compõem o GeoPark Araripe adotou-se como base os geossítios abertos para visitação e seus valores indicados em Mochiutti et al (2012), presentes nos seis municípios. Os resultados iniciais dessa proposta, que visa uma especificação deste patrimônio cultural nos respectivos geossítios estão organizados no Quadro 2. O Cariri cearense se notabiliza essencialmente por seu patrimônio, natural e cultural. Esse patrimônio tem seu berço em uma história natural de milhões de anos, fomentada mais significativamente pelos processos de junção e separação da América do Sul e África, os quais, por fim, estruturaram a maior bacia sedimentar interior do Brasil, a bacia do Araripe, dotada de dois dos principais depósitos fossilíferos do Brasil e do mundo: os membros Crato e Romualdo, da Formação Santana (CARMO et al., 2010; KELLNER, 2002; VIANA e NEUMANN, 2002). A história geológica é seguida pela formação do relevo ou história geomorfológica, que tem capítulo importante no processo de soerguimento das rochas da bacia do Araripe na forma de um modelado que emoldura a região, a chapada do Araripe (PEULVAST et al., 2011). Aliás, a estruturação do relevo e das bacias hidrográficas propiciaram a convergência das águas que, ora infiltrando e brotando sob a forma de nascentes, ora escoando e modelando as paisagens, originaram a biodiversidade do Cariri um patrimônio do país (MOURA-FÉ, 2017). Nesse contexto, os primeiros habitantes da região, o povo Kariri, pôde se estabelecer e erigir sua própria história e tradições. O povo encontrou a natureza do Cariri, se encantou e ficou, inspirado, fomentou diversas manifestações culturais (LIMAVERDE, 2015). São incontáveis expressões culturais associadas à natureza, presentes direta e indiretamente nas mais diversas formas de artesanato (com madeira, calcário, com barro cru ou cozido), nos mitos e lendas associadas às rochas, relevos, às águas dos rios e nascentes, contadas por meio da história oral há gerações. É a relação de identidade regional com a chapada do Araripe, nas letras das canções, nas danças, nas roupas, nas casas, nas palavras e nos gestos das pessoas (MOURA-FÉ, 2017). Sendo assim, o inventário apresentado é apenas um pequeno e ilustrativo recorte da riqueza do patrimônio cultural e da complexidade da sua relação com a geodiversidade. O detalhamento desse inventário e aprofundamento das análises serão temas das próximas etapas da pesquisa. Correlacionando: Por fim, como proposta teórico-metodológica, o passo seguinte após a (1) definição, inicial, frise-se, de categorias de análise do patrimônio cultural, e do (2) inventário básico das expressões culturais materiais e imateriais no contexto espacial dos municípios do “território GeoPark Araripe”, é a correlação das informações, uma etapa analítica que será feita no desenvolvimento das pesquisas. Todavia, entende-se que para propor uma relação analítica entre geodiversidade e cultura deve haver uma proposição das categorias de análise da geodiversidade, tal qual foi proposto para o patrimônio cultural. Sendo assim, o Quadro 3 apresenta uma proposta de 10 categorias de análise da geodiversidade, terceiro grupo de resultados da pesquisa, buscando ampliar o seu escopo e, assim, possibilitar o diálogo com as categorias do patrimônio cultural permitindo o desenvolvimento teórico-metodológico da geocultura dentro das etapas futuras da pesquisa.

Categoria de Identificação e Análise do Patrimônio Cultural

Quadro 1: Categorias de Identificação e Análise do Patrimônio Cultural. Fonte: IPHAN, 2017. Organização: Silva e Moura-Fé.

Mapa do Território do GeoPark Araripe

Figura 1: Mapa do território do GeoPark Araripe, região sul do Ceará, com indicação dos geossítios abertos para visitação.Fonte: Moura- Fé et al.(2017)

Inventário do Patrimônio Cultural - GeoPark Araripe

Quadro 2: Inventário básico do Patrimônio Cultural – GeoPark Araripe. Fonte: Mochiutti et al. (2012) e autores. Organização: Silva e Moura-Fé.

Categorias de Identificação e Análise - Geodiversidade

Quadro 3: Categorias de Identificação e Análise – Geodiversidade. Elaboração: Marcelo Moura-Fé.

Considerações Finais

A proposta de entender a relação entre natureza e cultura através de um roteiro teórico-metodológico voltado para a análise da influência da geodiversidade sobre o patrimônio cultural tem se mostrado desafiadora e instigante. No intuito de contribuir com essa discussão esse artigo buscou meios de identificação dessa relação em uma área específica, ou seja, os municípios que compõem o “território” do GeoPark Araripe, indicando uma proposta inicial de aplicabilidade. Nesse roteiro, que entende-se que deva ser minucioso, dada a complexidade das temáticas, o desenvolvimento das categorias de análise da Geocultura, tendo de um lado, o patrimônio cultural (material e imaterial) e, por outro, na geodiversidade (geologia, geomorfologia e pedologia), é imprescindível e, aqui, apresentou-se as versões iniciais. Essas categorias de análise precisam ser postas diante da realidade, etapa fundamental para corroborar ou refutá-las. Assim, o fizemos de forma básica no contexto do GeoPark Araripe, recorte espacial que se notabiliza por ambos os patrimônios – natural e cultural. Nesse roteiro teórico-metodológico a 1ª etapa passa pela identificação, tendo o inventário como ferramenta importante; na 2ª etapa tem-se a análise específica da relação entre geodiversidade e cultura, a priori, utilizando as categorias de análise propostas. O detalhamento desse inventário na região do Cariri e o aprofundamento dessa proposta teórico-metodológica se apresentam como temas das próximas etapas da pesquisa

Agradecimentos

Os resultados apresentados neste trabalho são derivados do desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado: “Geocultura: contribuição teórica e desenvolvimento da aplicabilidade no GeoPark Araripe”, desenvolvido pelos autores deste artigo, aprovado na seleção PRPRG – 01/2017 do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Regional do Cariri (PIBIC-URCA), a quem agradecemos pelo apoio concedido através da concessão da bolsa de pesquisa.

Referências

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