Autores
Lopes, V.M. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO) ; Ribeiro, S.C. (UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI)
Resumo
O ensino do relevo nas escolas ainda tem sido trabalhado de forma tradicional e desvinculada da realidade do aluno, gerando resultados negativos no que concerne ao ensino-aprendizagem desse conteúdo. É necessária uma abordagem que trabalhe o relevo como algo próximo do aluno, e como elemento que influencia e é influenciado pela dinâmica socioespacial. Neste sentido, acreditamos que a Etnogeomorfologia pode ser um caminho muito positivo para abordar o relevo nas escolas a partir dos conhecimentos locais dos discentes acerca das formas e processos geomorfológicos. Assim sendo, o objetivo desse trabalho é identificar o conhecimento etnogeomorfológico dos alunos do 6° ano do ensino fundamental de uma escola pública do município de Assaré, CE. A coleta de dados foi feita a partir da aplicação de entrevistas semi-estruturadas, e os resultados obtidos foram satisfatórios, mostrando que os alunos possuem conhecimentos etnogeomorfológicos muito importantes para a aprendizagem da geomorfologia.
Palavras chaves
Etnogeomorfologia; Ensino de Geomorfologia; Relevo
Introdução
Bertolini e Valadão (2009) discutem que, o ensino de Geografia sempre foi praticado de forma a fazer o aluno conhecer os recursos naturais e sociais do país, enquanto o relevo foi abordado pelos livros didáticos e professores como algo dissociado da realidade do educando e da relação sociedade– natureza. No entanto, o ensino do relevo na Educação Básica deve ser pensado a partir da realidade dos indivíduos, pois pensar o relevo em termos geográficos é pensar em como acontece a percepção da paisagem vivenciada pelos alunos. Aproximando os conceitos da prática, é possível compreender como o relevo está associado às mais diversas atividades humanas (transporte, agricultura, moradia, etc.) e como essas relações influenciam a organização socioespacial e são por esta influenciada (BERTOLINI; VALADÃO, 2009; BERTOLINI; CARVALHO, 2010). Callai (2010) destaca a importância de partir do conhecimento dos alunos e de seu contexto sociocultural para desenvolver o estudo dos conceitos geográficos, pois isso possibilita ao educando uma aprendizagem significativa que leva-o a entender a espacialidade dos fenômenos e sua categoria como de produto social. Na mesma perspectiva, Castellar (2010, p.47) ressalta que “a aprendizagem será significativa quando a referência do conteúdo estiver presente no cotidiano da sala de aula, quando se considerar o conhecimento que a criança traz consigo, a partir de sua vivência”. Paisagem e relevo estão conectados, por isso apresentar de maneira clara e adequada o conceito de paisagem, é essencial para a compreensão dos aspectos geomorfológicos. Cavalcanti (2003) lembra que os alunos associam a paisagem à beleza de elementos naturais como rios, árvores e formas de relevo que conseguem visualizar. Tal associação ajuda a construir uma noção estereotipada de paisagem (e também do relevo). Deste modo, os alunos acabam construindo a ideia de que só existe relevo nas paisagens ditas naturais e áreas rurais, não compreendendo que mesmo no espaço em que vivem, seja rural ou urbano, há um relevo na qual estão fixadas as atividades antrópicas. A escala espacial de análise do relevo também é importante na compreensão desse elemento. As formas geomorfológicas de maiores amplitudes, como planaltos, planícies e depressões geralmente são o foco do ensino de Geomorfologia, sob o domínio do ensino tradicional que privilegia “a conceituação, descrição e a constatação de suas formas em macroescala de maneira desarticulada com outros processos naturais” (BERTOLINI; VALADÃO, 2009 p.37). Tal fato torna a compreensão da geomorfologia mais abstrata e menos atrativa, já que o aluno não consegue estabelecer relação entre o conteúdo e a realidade que vive. Neste sentido, Bertolini e Valadão (2009) destacam a importância de se trabalhar com feições de maior escala como a vertente. A partir das problemáticas aqui levantadas sobre o ensino de geomorfologia, defende-se que o conhecimento local sobre o relevo e seus processos, ou seja, o conhecimento etnogeomorfológico poderá ser um instrumento pedagógico viabilizador de um ensino-aprendizagem mais eficiente, já que parte do conhecimento que o individuo já possui, dotado, portanto de significado. A Geomorfologia deve ser abordada sob uma perspectiva que interrelaciona o conhecimento local dos alunos (construído pelas experiências vividas) e o conhecimento científico. Nesse âmbito, a Etnogeomorfologia, como etnociência que se preocupa com a compreensão do relevo pelas comunidades tradicionais baseada nas percepções de mundo que esses grupos têm, surge como uma referência importante que proporciona a relação desses dois tipos de conhecimento. Assim, o principal objetivo desse trabalho é identificar o conhecimento etnogeomorfológico que os alunos do 6º ano do Ensino Fundamental têm sobre as formas de relevo e processos morfoesculturadores, assim como as taxonomias locais para tais elementos.
Material e métodos
Inicialmente foi feito um levantamento bibliográfico cuja principal referência utilizada foi a tese de doutorado de Ribeiro (2012), a qual trabalhou com o tema Etnogeomorfologia através de uma análise comparativa do conhecimento local sobre o relevo com produtores rurais na Região do Cariri Cearense. Considerando então a importância da valorização do conhecimento local sobre o relevo, entendemos que este poderia ser muito útil no ensino-aprendizagem de geomorfologia na Educação Básica. A fim de ratificar a existência (obviamente ainda em construção) do conhecimento etnogeomorfológico de alunos da Educação Básica, mais especificamente do ensino fundamental, escolhemos uma escola pública no município de Assaré, sul do estado do Ceará. Dentre as diversas turmas da escola, optamos pelo 6º ano cuja faixa etária média é de 11 anos de idade, com o intuito de verificar o conhecimento sobre o relevo adquirido nas séries iniciais. A geomorfologia, tomando por base os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs para o primeiro ciclo do ensino fundamental deve ser abordada dentro do objetivo de reconhecer na paisagem local e no lugar, as diferentes manifestações da natureza e a apropriação e transformação dela pela ação da coletividade dos grupos sociais (BRASIL-PCNs, 1999). Essa pesquisa foi executada no ano de 2013, na época a instituição possuía quatro turmas de 6º ano, três pelo turno da manhã totalizando oitenta e sete alunos e uma turma com vinte e nove alunos no turno da tarde, onde no total havia cento e dezesseis crianças matriculadas nessa série no referido ano. Foram selecionados aleatoriamente dez alunos de cada turma, que representavam aproximadamente 35% do total de alunos matriculados nessa série. Foi elaborado o roteiro de entrevista com uma sequência de questões abertas para verificação sobre o conhecimento desses alunos sobre o relevo e processos geomorfológicos. Vale ressaltar que as perguntas foram feitas de maneira clara e adequada ao nível cognitivo dos discentes, além disso, também foram utilizadas figuras apresentando formas de relevo e processos morfoesculturadores. Após a coleta de dados, foi feita uma análise dos resultados obtidos e a correlação destes com os conhecimentos científicos, visando identificar e organizar o conhecimento etnogeomorfológico abstraído dos alunos entrevistados.
Resultado e discussão
A Etnogeomorfologia é definida por Ribeiro (2012, p. 49) como “uma ciência
híbrida, que estuda o conhecimento que uma comunidade tem acerca dos
processos geomorfológicos, levando em consideração os saberes sobre a
natureza e os valores da cultura e da tradição locais”. Essa etnociência
pode trazer grande contribuição para a Geomorfologia, sob a forma de novas
perspectivas de interpretação geomorfológica, pautada nas comunidades
tradicionais, aliando o conhecimento técnico-científico a esses saberes
produzidos culturalmente.
É importante destacar que as comunidades denominadas de tradicionais, têm
características próprias e maneiras muito particulares de se relacionar com
o mundo se comparadas com as sociedades modernas. Elas possuem “padrões de
comportamento transmitidos socialmente, modelos mentais usados para
perceber, relatar e interpretar o mundo” (DIEGUES, 1996 p. 87).
Defendemos neste trabalho a aplicação dos conhecimentos etnogeomorfológicos
na prática pedagógica que envolve o ensino do relevo nas aulas de geografia,
pois considerar os conhecimentos locais que o educando possui acerca do
relevo, é valorizar um conhecimento prévio que ele já possui. A partir da
valorização desses conhecimentos, o conteúdo torna-se significativo, pois o
discente consegue reconhecer na discussão dos temas, as formas e processos
que ele vê em seu cotidiano.
Neste trabalho foi possível observar a carência que ainda existe no ensino-
aprendizagem de geomorfologia, e a necessidade de adotar medidas que
transformem essa realidade. Através da Tabela 1, pode-se observar que nenhum
dos alunos entrevistados soube definir claramente o que é relevo, mesmo
visualizando a imagem do mesmo. Somente após visualizarem a imagem de uma
forma geomorfológica, oito alunos, associaram a imagem que viram às
montanhas (pois o relevo é na maioria das vezes associado somente à essa
feição) e outros nove alunos associaram o relevo à paisagem, corroborando a
colocação de Bertolini e Valadão (2009) de que os alunos confundem relevo
com paisagem.
Tabela 1- Principais informações das entrevistas sobre Etnogeomorfologia,
aplicadas aos alunos de 6º ano do Ensino Fundamental.
Porém, a maior parte dos alunos (treze entrevistados), associou a imagem que
viu a elementos mais distantes do que realmente é relevo, como rio,
floresta, vento e nuvem, que na ocasião em questão, eram elementos que se
encontravam na figura apresentada. Vale ressaltar também que nove alunos
entrevistados não conseguiram dizer o que é relevo nem mesmo depois de
visualizarem a imagem.
Com a observação da Figura 1, que retrata uma paisagem do próprio município,
onde facilmente se visualiza uma colina e uma planície, os resultados
obtidos foram mais satisfatórios, e conhecimentos etnogeomorfológicos
surgiram na fala dos discentes. Ao observarem a figura, surgiram algumas
denominações locais para a colina como “morro” e “serra”; e para a planície
como “baixada”, “baixa”, “terreno”, “plana” (o), “vazante”, “baixio” e
“campo”. Tais nomenclaturas podem ser observadas nas Tabelas 2 e 3.
Figura 1- Imagem apresentada aos alunos na entrevista, zona rural do
município de Assaré.
Tabela 2 – Classificações dos alunos para a imagem de uma Colina
Tabela 3 - Classificações dos alunos para a imagem de uma Planície
Ao visualizarem a imagem de uma voçoroca, os alunos utilizaram como
principais denominações: “grota”, “barreira”, “barranco”, “levada”, “buraco”
e “riacho”. Dois alunos classificaram o que viram como deslizamento de
terra. Sobre a origem da voçoroca um dos alunos destaca: “porque quando
chove vai abrindo buracos e a água vai carregando a terra”.
Ao serem indagados sobre a melhor área para plantio trinta alunos
reconheceram a planície como o melhor lugar, escolha justificada pela
pedregosidade da colina e acumulação de água na planície, fato considerado
positivo para o cultivo. Três alunos (da zona rural) destacaram que a
planície é melhor “porque a terra baixa segura água”, “porque a terra é
frouxa” e “porque a terra é mais fina”.
Quando questionados sobre a existência (ou não) de diferenças entre o solo
da colina e o da planície, vinte e quatro alunos (a maioria da área rural)
afirmaram que estes solos eram diferentes. No geral, identificaram
diferenças como granulometria, pedregosidade, umidade, dureza ou
viscosidade. Algumas respostas se destacaram: “a parte mais alta é
apiçarrada”, “a terra do baixio é mais fina”, “a mais alta é mais seca e a
de baixo é mais molhada porque quando chove firma água”, “a terra de cima
tem mais pedras e barreiras e a de baixo é mais firme e segura água”, “o
baixio tem mais areia, porque quando chove a água leva a terra da parte mais
alta para a baixa” e “a terra do lugar mais alto é mais grossa e a do lugar
baixo é mais solta”.
No que se refere a prejuízos para a estabilidade do solo por causa do
desmatamento da vegetação, nove alunos (da zona urbana e rural) reconheceram
algum tipo de dano ao solo. Estes destacaram que “a terra vai rachar e ficar
com buraco e não vai dar mais para plantar, além disso, a terra sem as
raízes da planta vai ficar mais dura e seca”, “quando chover a água vai
levar a terra”, “a terra não vai mais ter a energia de antes” e “se derrubar
a mata o rio entra e derruba a plantação do baixio”. Nessas falas destaca-se
a noção implícita de erosão do solo, lixiviação dos nutrientes, importância
das raízes para a estabilidade do solo e enchentes e inundações decorrentes
do desmatamento da vegetação.
Principais informações das entrevistas sobre Etnogeomorfologia, aplicadas aos alunos de 6º ano do Ensino Fundamental
Imagem apresentada aos alunos na entrevista, zona rural do município de Assaré
Classificações dos alunos para a imagem de uma Colina
Classificações dos alunos para a imagem de uma Planície
Considerações Finais
Não faz sentido abordar o relevo e seus processos de maneira desvinculada da vida do aluno, como algo distante ou externo à sua realidade. É preciso associar a geomorfologia àquilo que os educandos vivenciam, confrontando o conteúdo geomorfológico com a Etnogeomorfologia. Ao resgatar aquilo que o aluno sabe, trazendo para o centro da discussão esse conhecimento etnogeomorfológico, o aluno se reconhecerá no que está sendo discutido, e isso provavelmente renderá melhores resultados no processo de ensino- aprendizagem. Possivelmente um dos problemas dessa deficiência no conhecimento não só geomorfológico, mas geográfico, seja a “linguagem estranha” utilizada na escola, linguagem essa que não raramente, não faz sentido ao aluno. A geomorfologia trabalhada sem nenhuma relação com o vivido acaba sendo só mais um conteúdo escolar, no entanto ao ser apresentada como algo real no cotidiano das pessoas, passa a ter significado e aplicabilidade para a compreensão da dinâmica socioambiental. Como vimos, os alunos possuem muitos conhecimentos etnogeomorfológicos que transpõe até mesmo o limite da geomorfologia, e que foram construídos e repassados através das gerações e experiências vividas, e por isso estão totalmente relacionados à dimensão cultural. Esses saberes precisam apenas ser considerados e valorizados na prática pedagógica da Educação Básica, a fim de construir uma aprendizagem geomorfológica significativa, onde o ensino do relevo supere o caráter descritivo tradicional.
Agradecimentos
Referências
BERTOLINI W. Z.; CARVALHO, V. L. M. Abordagem da escala espacial no ensino-aprendizagem do relevo. Terra e Didática, v. 6, n.2, 2010, p. 58-66. Disponível em: <http://www.ige.unicamp.br/terraedidatica/> Acesso em: 15 de setembro de 2012.
BERTOLINI, W. Z.; VALADÃO, R. C. A Abordagem do Relevo pela Geografia: uma análise a partir dos livros didáticos. Terra e Didática, v. 5 p. 27-41, 2009. Disponível em:< http://www.ige.unicamp.br/terraedidatica/> Acesso em: 20 de setembro de 2012.
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