Autores

Siman Gomes, C. (UFMG) ; Ferreira Cardoso, D.C. (UFMG) ; Lima Borges Ferreira, L. (UFMG) ; Nogueira Silva, S.A. (UFMG) ; Magalhães Júnior, A.P. (UFMG)

Resumo

As Áreas Úmidas (AUs) desempenham inúmeras funções ambientais, que se traduzem na sua própria variedade tipológica. Os sistemas de classificação das AUs são fundamentais para a sua proteção e gestão, pois permitem categorizá-las, compará-las, além de prover uniformidade conceitual e terminológica. A proposta de classificação brasileira não incorpora critérios geomorfológicos, essenciais para situar as AUs na paisagem, identificar sua forma e entender funcionamento hidrológico. O objetivo geral deste artigo é abordar a relevância de tais critérios para o Sistema de Classificação das AUs Brasileiras, com base no Sistema de Classificação da África do Sul, o qual apresenta base hidrogeomorfológica científica. Foi feita uma investigação teórica de ambos os sistemas, avaliando estrutura, organização, critérios e aplicabilidade. Verificou-se que o sistema sul-africano pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema brasileiro.

Palavras chaves

áreas úmidas; hidrogeomorfologia; sistema de classificação de áreas úmidas

Introdução

As Áreas Úmidas (AUs) são consideradas, mundialmente, ecossistemas de grande relevância ambiental, pois atuam na proteção da biodiversidade, no controle de inundações, na recarga de aquíferos, na melhoria da qualidade das águas, além de proporcionarem inúmeros benefícios sociais (MITSCH e GOSSELINK, 2000). A perda e a degradação desses ambientes representam danos consideráveis e, frequentemente, irreversíveis ao meio ambiente. As diversas funções ambientais desempenhadas pelas AUs se traduzem na própria variedade tipológica que, por sua vez, se traduz na complexidade de encontrar uma única definição conceitual de AUs que seja adotada pelas diferentes áreas do conhecimento. O primeiro encontro internacional que marcou a valorização e a discussão sobre a relevância das AUs ocorreu em 1971, na Convenção Internacional sobre as Zonas Úmidas, em Ramsar, no Irã. A Convenção de Ramsar definiu as AUs como: Áreas de pântano, charco, turfa ou água, natural ou artificial, permanente ou temporária, com água estagnada ou corrente, doce, salobra ou salgada, incluindo áreas de água marítima com menos de seis metros de profundidade na maré baixa. O Brasil tornou-se membro da Convenção de Ramsar em 1996, mas pouco avançou nos estudos de classificação das AUs, o que propiciou sua marginalização no campo legal (GOMES e MAGALHÃES JÚNIOR, 2015). A revisão do Código Florestal, por meio da Lei 12.651/12, apresentou, pela primeira vez, um conceito para as AUs, contudo, não foi mencionado uma legislação específica para a sua proteção (PIEDADE et al., 2012; INAU,2013). Os Sistemas de Classificação das Áreas Úmidas são fundamentais para proteção e gestão das AUs, já que permite categorizar e comparar diferentes tipos de AUs, entender sua estrutura e seu funcionamento, valorar suas funções ambientais, além de permitir uniformidade do conceito e das terminologias (MITSCH e GOSSELINK, 2007). Há diversos instrumentos oficiais de classificação das AUs em nível internacional. No Brasil, algumas instituições como o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INAU), na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e o Laboratório de Ecologia e Conservação de Ecossistemas Aquáticos, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), realizaram pesquisas para delimitar e classificar algumas das grandes AUs brasileiras e seus principais habitats (JUNK et al., 2013). Estes trabalhos tiveram uma perspectiva, sobretudo, ecológica. A proposta de classificação brasileira, elaborada pelo INAU, não incorpora critérios geomorfológicos. Estes critérios permitem situar as AUs na paisagem, identificar sua forma e entender seu funcionamento hidrológico, como identificar áreas de recarga e/ou descarga, áreas de maior vulnerabilidade física, áreas em processo de formação ou desgaste, dentre outros aspectos. Nesse sentido, entende-se que a proteção das AUs deve ser respaldada por legislação, a qual necessita de parâmetros aplicáveis que avaliem, além de sua importância ecológica, o seu funcionamento hidrogeomorfológico (HGM). Dessa forma, considerando a importância da inserção de critérios HGM nos sistemas de classificação de AUs, o objetivo geral deste artigo é abordar a relevância de tais critérios para o Sistema de Classificação das Áreas Úmidas Brasileiras, com base no Sistema de Classificação das Áreas Úmidas e de Outros Ecossistemas Aquáticos da África do Sul (SANBI, 2009; OLLIS et al., 2013). Como objetivos específicos propõe-se analisar ambos os sistemas e levantar considerações e reflexões sobre as lacunas existentes na proposta brasileira. A escolha do Sistema de Classificação da África do Sul se baseia nas seguintes justificativas: o referido sistema apresenta base hidrogeomorfológica científica; o sistema é altamente didático, ilustrado e regulamentado pelo Estado; há semelhanças geográficas entre a África do Sul e o Brasil, como latitudes coincidentes; a participação de ambos os países nos BRICS pode possibilitar um maior intercâmbio científico.

Material e métodos

O presente artigo se baseou em uma investigação teórica em que se buscou compreender o atual panorama dos estudos das AUs no Brasil e no mundo, tanto no meio cientifico quanto legal. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica em bibliotecas e, sobretudo, na internet, buscando livros acadêmicos, artigos, dissertações, teses, leis e manuais governamentais que tratam das AUs. Em um segundo momento, foi dado prioridade a leitura e avaliação dos principais Sistemas de Classificação das AUs atualmente existentes e reconhecidos internacionalmente, dando enfoque a análise do Sistema de Classificação das Áreas Úmidas e Ecossistemas Aquáticos da África do Sul (SANBI, 2009; OLLIS et al., 2013) e do Sistema de Classificação das Áreas Úmidas Brasileiras (INAU, 2013). Para estes sistemas, foi feita uma avaliação dos objetivos, da estrutura, da organização e dos principais parâmetros e critérios que os compõem, bem como sua aplicabilidade para identificação e classificação das AUs em trabalhos de escritório e campo. Por fim, foi realizada uma análise comparativa das possíveis contribuições que o sistema sul-africano pode oferecer ao sistema de classificação das AUs brasileiras.

Resultado e discussão

O Sistema de Classificação das Áreas Úmidas e outros Ecossistemas Aquáticos da África do Sul (SANBI, 2009; OLLIS et al., 2013), desenvolvido pelo SANBI (Instituto Nacional de Biodiversidade da África do Sul) busca, inicialmente, superar a diferença conceitual do termo AU entre a Convenção de Ramsar e a Lei Nacional das Águas Sul Africana, abrangendo o maior número de ecossistemas possíveis na classificação. As seguintes definições de AU e Ecossistema Aquático foram adotadas pelo sistema de classificação (OLLIS et al., 2013, p.1): Áreas Úmidas - Áreas de transição entre sistemas aquáticos e terrestres onde o nível d’água é frequentemente situado próximo ou na superfície, ou a área é periodicamente coberta com água superficial, e que em circunstâncias normais suporta uma vegetação tipicamente adaptada à solos saturados. Ecossistema Aquático - Ecossistema que é permanentemente ou periodicamente inundado por corpos de água lóticos ou lênticos, ou o qual tem solo que é permanentemente ou periodicamente saturado dentro de 0.5 metros da superfície. O Sistema de Classificação da África do Sul apresenta dimensão escalar crescente, organizado em seis níveis de classificação, sendo que os quatro primeiros são aplicados hierarquicamente para distinguir diferentes tipos de AUs e são consideradas características primárias do sistema. O Nível 1 faz uma distinção entre sistemas Marinho, Estuarino (Litorâneo) e Interior. Os Sistemas Marinhos e Estuarinos são distinguidos com base no grau de conectividade com o oceano, sendo que os marinhos são sistemas abertos ao longo da costa até uma profundidade de dez metros na maré baixa e os estuarinos são parte de um curso de água que está permanentemente ou periodicamente aberto ao mar. Os Sistemas Interiores não apresentam conexão atual com o oceano (SANBI, 2009; OLLIS et al., 2013). O Nível 2 se refere à configuração regional física onde a AU se encontra, determinada com base nos atributos biofísicos da região e/ou de seu bioma. O Nível 3 diferencia os Sistemas Estuarinos pela periodicidade de conexão com o oceano e os Sistemas Interiores em quatro Unidades de Paisagem, a saber: fundo de vale, planície, encosta e superfícies planas elevadas, como patamares e topos de morro. Para os Sistemas Interiores este nível reconhece que os processos hidrogeomorfológicos atuantes nas AUs podem variar de acordo com suas posições topográficas no relevo, devendo ser abordados na mesma escala que a do ecossistema mapeado. O Nível 4 classifica as AUs quanto às Unidades Hidrogeomorfológicas (Unidades HGM), que são definidas pela: (I) forma e a configuração local do relevo; (II) pelas características hidrológicas, que descrevem a natureza do movimento da água dentro, através e para fora de uma AU; e (III) pela hidrodinâmica, que descreve a direção e a força do fluxo da água (SANBI, 2009, p.8; OLLIS et al., 2013, p.18). Esses fatores facilitam o processo de identificação e mapeamento das AUs, indicando de maneira mais efetiva locais de possível ocorrência das mesmas. Sanbi (2009) classificou as Unidades HGM dos Sistemas Marinhos em costas expostas e enseadas e as unidades dos Sistemas Estuarinos em baía, lago, estuário aberto, estuário fechado e rio afogado. Ollis et al. (2013) apresentaram as Unidades HGM dos Sistemas Interiores em maior nível de detalhe, classificando-as em seis Unidades: AUs de planícies de inundação; AUs de fundos de vale com curso d’água; AUs de fundos de vale sem curso d’água; AUs de depressões: endorréicas (com curso d’água de entrada), exorréicas (sem curso d’água de saída) e sem curso d’água de entrada e saída; AUs de nascentes: com ou sem curso d’água; AUs de planícies alagadas. Cada unidade HGM apresenta uma forma de relevo e características hidrológicas e hidrodinâmicas específicas em termos de contribuição e saída das águas superficiais (acúmulo de água pluvial, escoamento superficial e/ou inundação por corpos lóticos e lênticos) e das águas subsuperficiais (infiltração, percolação, exfiltração e variação do nível freático), que serão responsáveis pela origem, manutenção e função hidrológica das AUs na paisagem, bem como a formação e/ou desgaste dos subsistemas de relevo associados a cada unidade. O Nível 5 aborda a influência que as AUs recebem das marés nos Sistemas Marinhos e Estuarinos e do regime hidrológico (duração e frequência da inundação e/ou saturação) nos Sistemas Interiores. Embora este nível não seja aplicado de forma estritamente hierárquica, é aplicado junto com o Nível 4 como o passo final para distinção de uma unidade funcional da outra, visto que são características funcionais importantes que definem as AUs. O Nível 6, por fim, busca definir, de forma não-hierárquica, as características específicas do sistema, a saber: geologia, origem natural ou artificial, tipo de cobertura vegetal, substrato, salinidade e pH. Estas características podem ser descritas em qualquer ordem, variando em função da disponibilidade de dados para classificar as AUs neste nível de detalhe. No Brasil, o Sistema de Classificação das Áreas Úmidas Brasileiras, proposto pelo INAU (2013. p. 23 e 24), define as AUs da seguinte forma: Ecossistemas na interface entre ambientes terrestres e aquáticos, continentais ou costeiros, naturais ou artificiais, permanentemente ou periodicamente inundados por águas rasas ou com solos encharcados, doces, salobras ou salgadas, com comunidades de plantas e animais adaptadas à sua dinâmica hídrica. As AUs devem possuir (1) presença, pelo menos periodicamente, de espécies de plantas superiores aquáticas ou palustres, e/ou (2) presença de substrato/solo hídrico. O sistema brasileiro é subdividido em três níveis hierárquicos, que são os sistemas, os parâmetros hidrológicos e os aspectos da vegetação (INAU, 2013). O primeiro nível faz distinção entre Sistemas Costeiros, Continentais/Interiores e Antropogênicos. As AUs costeiras são aquelas naturais que apresentam influência direta do oceano. As AUs interiores são aquelas naturais que se encontram dentro do continente e sem influência marinha. Por sua vez, as AUs antropogênicas são aquelas costeiras ou interiores, que resultam da atividade humana (INAU, 2013). O segundo nível hierárquico baseia-se em parâmetros hidrológicos e é composto por cinco subsistemas, duas ordens e duas subordens. Conforme INAU (2013) e Junk et al. (2013), essa diferenciação em ordens e subordens enfatiza a dinâmica hidrológica, principal elemento definidor das AUs. Neste nível, as características hidrológicas identificam a disponibilidade e a origem da água, dividindo-as em dois grupos, a saber: AUs permanentemente cobertas por água ou que apresentam solos permanentemente saturados (AUs permanentes ou perenes) e AUs que secam periodicamente (AUs sazonais ou temporárias e efêmeras), representando a maior parte das AUs de clima tropical e subtropical. Estas AUs apresentam grandes flutuações no nível d’água, denominados de “pulsos de inundação”, classificados no sistema de acordo com a periodicidade (previsível, imprevisível), a frequência (monomodal e polimodal) e a amplitude (alta, baixa e variável). No terceiro nível hierárquico, o sistema de classificação brasileiro abrange aspectos vegetacionais, baseados na ocorrência de plantas superiores e na estrutura de suas comunidades, sendo dividido em classe, subclasse e macrohabitats (INAU, 2013). Com base na análise dos dois sistemas propostos entende-se que o sistema sul- africano pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema brasileiro, com a inclusão, nos primeiros níveis de classificação, da geomorfologia como atributo de localização na paisagem e unidade funcional. A vegetação entra em níveis posteriores, com parâmetros de caráter específico e descritivo. Além disso, entre as possíveis contribuições sugere-se incluir os sistemas marinhos já no primeiro nível de classificação das AUs brasileiras, de forma a englobar todas as AUs reconhecidas como sítios de Ramsar.

Considerações Finais

O método de seleção do Sistema de Classificação sul-africano apresenta bons critérios para a classificação das AUs, considerando seus mais diversos tipos e escalas. Conforme Semeniuk e Semeniuk (1995), os aspectos HGM são considerados fundamentais para a determinação do funcionamento das AUs, independentemente do tipo de clima, solos e vegetação. A proposta de um sistema de classificação que incorpore parâmetros HGM é fundamental para a elaboração de instrumentos que visem a proteção e a gestão das AUs, pois estes parâmetros permitem identificar as áreas prioritárias para proteção e gestão dos recursos hídricos. Além disso, observa-se que os aspectos geomorfológicos auxiliam o processo de identificação e mapeamento das AUs por técnicos de diversas áreas, seja em gabinete ou em campo. Dessa forma, verifica-se a necessidade de aprimorar o Sistema de Classificação das AUs Brasileiras, incluindo parâmetros geomorfológicos, bem como os Ecossistemas Aquáticos para que todos os sítios de Ramsar sejam inclusos na classificação.

Agradecimentos

Referências

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