Autores

Barros, L.F.P. (UFMG) ; Magalhães Jr., A.P. (UFMG)

Resumo

Este trabalho propõe e discute fases de evolução da paisagem fluvial do Quadrilátero Ferrífero no Quaternário Superior. Os resultados revelam uma paisagem fluvial jovem e um relevo dinâmico, sensível às forças tectônicas e variações climáticas. Sete fases regionais de formação de níveis fluviais foram identificadas entre 1-83ka, segundo datações por Luminescência Opticamente Estimulada. A maioria dessas fases é seguida por períodos de encaixamento em resposta a um soerguimento regional, levando ao escalonamento dos níveis fluviais. Observa-se ainda deslocamento de níveis e deformação de depósitos. As datações permitem associar as diferentes fases de formação de níveis fluviais com oscilações climáticas, as quais podem ter influenciado os ritmos da epirogênese regional. As fases mais secas/frias deixaram como registro diferentes tipos de couraças nas sucessões deposicionais, as quais são de grande relevância na correlação dos depósitos.

Palavras chaves

luminescência opticamente estimulada; neotectônica; oscilações climáticas

Introdução

Os registros sedimentares aluviais são componentes chave no desenvolvimento de uma compreensão integrada da geomorfologia, ainda que quase sempre incompletos, pois contém informações que não são disponíveis em outros registros ambientais (Jacobson et al., 2003). Os depósitos fluviais são importantes registros/respostas de eventos deposicionais e desnudacionais, exogenéticos e endogenéticos (Sommé, 1990). Dessa forma, tais registros sedimentates fornecem informações valiosas sobre a evolução da paisagem, não apenas em termos de mudança de padrões de drenagem, mas também mudanças na topografia e no relevo (Bridgland e Westaway, 2014). Em nível científico, a análise da sedimentação fluvial tem sido feita internacionalmente com dois focos distintos, porém complementares: um na estratigrafia dos depósitos e outro nos processos modeladores do relevo (Pazzaglia, 2013). Quando o foco é o relevo, busca-se analisar a distribuição dos registros fluviais ao longo dos vales, sua organização em níveis deposicionais e a relação entre esses níveis, a fim de se identificar os condicionantes para a sua distribuição e organização, tais como tectônica, clima, nível de base, controladores internos e antropismo (Bridgland e Westaway, 2008; 2014; Wang et al., 2010; Doğan, 2011; Viveen et al., 2013; Rosina et al., 2014; Rossetti et al., 2014). Nesse caso, um nível deposicional fluvial é tomado como um marco (X, Y, Z) de um momento erosivo- deposicional específico de um curso d’água. As sucessões deposicionais aluviais são os testemunhos dos referidos níveis, assim como o podem ser possíveis superfícies erosivas fluviais, as quais não devem ser confundidas com superfícies estruturais. O Quadrilátero Ferrífero (QF) é um dos mais marcantes conjuntos serranos do sudeste do Brasil. Ocupada e investigada desde o início do ciclo do ouro (fim do século XVII), esta unidade é de grande interesse histórico, científico e sócio-econômico-ambiental, tendo em vista suas reservas minerais e hídricas (Salgado e Carmo, 2015). Sustentada por rochas arqueanas e proterozoicas, a morfologia da área pode ser definida como resultado da evolução de um substrato geológico deformado, resultante das orogêneses Transamazônica e Brasiliana, ocorridas a 2,2-2,0 Ga e a 600 Ma, respectivamente (Uhlein e Noce, 2012). Os inputs tectônicos e a intercalação de litologias com diferentes resistências às intempéries levaram a uma intensa dissecação pela drenagem e à inversão do relevo, deixando sinclinais relativamente alçadas e anticlinais rebaixadas. Segundo Medina et al. (2005), esse processo teria destaque durante um período geológico mais recente (Neógeno e Quaternário), interrompendo eventos de aplanamento do relevo durante o Cretáceo e o Paleógeno. Nesse sentido, há um papel preponderante do trabalho fluvial a longo termo no modelado do QF. Diante dessa importância do trabalho fluvial e visando aprofundar a compreensão da geomorfologia regional durante o Cenozoico Superior, diversos levantamentos de níveis e sucessões deposicionais fluviais foram empreendidos no QF nas últimas décadas (Valadão e Silveira, 1992; Magalhães Jr. e Saadi, 1994, Marques, 1997; Moreira, 1997, Bacellar et al., 2005; Raposo et al., 2008; Cherem et al., 2008, Rossi, 2008; Costa et al., 2010; Lana e Castro, 2010; Magalhães Jr. et al., 2011; 2012; Barros e Magalhães Jr., 2013). A despeito do relativo grande número de trabalhos realizados, esses estudos são de caráter local, tendo sido investigados apenas um ou dois vales em cada estudo. O presente trabalho pretende suprir a lacuna de um estudo de caráter regional. A partir de novos dados e da releitura em campo da literatura sobre o tema na área, este trabalho busca discutir a geomorfogênese do QF revelada pelo quadro de níveis e sucessões deposicionais fluviais. Desse modo, procura-se contribuir para a compreensão de eventos geomorfogenéticos responsáveis pela esculturação do relevo no sudeste do Brasil.

Material e métodos

O QF se estende por uma área de aproximadamente 7.000 km2, drenada em sua porção oeste e central por afluentes da bacia hidrográfica do Rio São Francisco (sub-bacias do alto-médio Rio Paraopeba e alto Rio das Velhas, respectivamente) e em sua porção leste por afluentes da bacia do alto Rio Doce. Foi feita extensa revisão da literatura sobre níveis e sucessões deposicionais fluviais no QF e a releitura desses trabalhos em campo, a fim de relacionar as informações e de reinterpretá-las à luz do conjunto. Foram escolhidos 13 vales fluviais para os levantamentos, incluindo áreas para releitura e para novas investigações. A escolha de novas áreas (vale do Ribeirão Sardinha, Ribeirão Carioca e Rio Barão de Cocais) visou completar o quadro regional no sentido de abarcar os principais vales em termos de registros deposicionais fluviais preservados. Nas campanhas de campo foram levantados dados de depósitos fluviais a partir de seções verticais e da observação do seu contexto espacial. Foram destacadas: a situação do depósito em relação a outros (escalonado, embutido, encaixado, de preenchimento, pareado, isolado – Suguio e Bigarella, 1979; Christofoletti, 1981; Summerfield, 1990; Easterbrook, 1999); a altitude e a posição dos depósitos em relação aos cursos fluviais atuais (altura da base do perfil estimada em campo e/ou cartas topográficas); composição granulométrica, espessura e organização de fácies, incluindo o tipo de transição entre as mesmas (abrupta ou gradual). Nas camadas de cascalho foi determinado o predomínio ou não de matriz, além do tamanho médio, litologia e grau de arredondamento dos clastos. Observou-se ainda a presença de estruturas sedimentares, cimentação, matéria orgânica e bioturbação. Os níveis deposicionais de cada vale foram identificados, sobretudo, pela relação dos dados de altura e composição estratigráfica dos depósitos. Foram feitas representações da organização desses níveis em seções transversais aos vales, além de perfis estratigráficos de síntese. Algumas sucessões deposicionais representativas foram amostradas para a datação dos sedimentos por LOE. Para tanto, foram coletadas amostras ao abrigo de luz, utilizando-se sacos pretos e tubos de PVC (5x30 cm). Estes foram inseridos nos perfis horizontalmente, por percussão, coletando-se amostras em camadas preferencialmente mais arenosas mais próximas da base das sucessões deposicionais. As amostras foram enviadas ao laboratório Datação, Comércio e Prestação de Serviços Ltda., em São Paulo, onde foram preparadas e analisadas para a extração de sua idade absoluta. No laboratório, o material da parte central dos tubos foi extraído e todo o seu tratamento se deu sob luz vermelha de baixa intensidade. As amostras foram analisadas pelo método SAR (single aliquot regenerative-dose), no qual apenas uma alíquota (~7 mg) é utilizada na medida do sinal natural de LOE e nas diversas etapas de irradiação para a construção da curva de calibração, tendo sido analisadas cinco alíquotas em cada amostra e obtido um valor médio. O detalhamento da metodologia pode ser encontrado no sítio eletrônico do laboratório (http://www.datacao.com.br/). Por fim, os níveis deposicionais de cada vale foram organizados em fases regionais da evolução da paisagem fluvial, propostas com base na relação de dados da datação dos depósitos, características das sucessões deposicionais (como a presença de couraças), bem como o contexto geomorfológico de cada nível em seu respectivo vale, ou seja, sua relação com níveis mais antigos e mais recentes.

Resultado e discussão

A organização dos níveis fluviais de cada vale em seções transversais é mostrada nas Figuras 1 a 3. A partir desse quadro e das idades obtidas por LOE, é possível propor que a geomorfogênese quaternária do QF é marcada por sete fases regionais de formação de níveis deposicionais fluviais entre ~83ka e o presente (Figura 4). Embora ocorram registros mais antigos em alguns vales, eles são muito escassos e insuficientes para a consideração de outras fases regionais. Além disso, nem todas as fases têm registros preservados em todos os vales. Um pulso neotectônico ocorrido no Pleistoceno Médio a Inferior seria responsável por um soerguimento generalizado da Plataforma Brasileira (Saadi, 1993). Este evento pode ter levado à organização da hidrografia regional em seus vales atuais, dando início a um processo acelerado de dissecação no QF, do qual os registros de níveis fluviais analisados seriam testemunhos. Fase 1 É testemunhada por depósitos com idade média de ~83ka. Destaca-se a discrepância na altura dos níveis (Figura 4), presente também nas fases subsequentes. Assim como na questão de superfícies de erosão no QF (Varajão, 1991), a existência de diferentes níveis de base locais e a importância de soerguimentos regionais – que afetaram com intensidade variável as diferentes porções do relevo ao longo do Quaternário – inviabilizam a relação direta de cotas altimétricas e alturas para identificação das fases da evolução fluvial dos vales. Estudos paleoclimáticos sobre períodos anteriores a 50ka em Minas Gerais (MG) são escassos (Barros et al., 2011). A partir de estudo em São Paulo (atual área de Mata Atlântica), Ledru et al. (2005) verificaram um clima úmido, condizente com pico de frequência de polens arbóreos identificado por Cruz Jr. (2003) a ~85ka. Fase 2 Após um novo período de dissecação houve a formação dos níveis fluviais escalonados da Fase 2, sob condições favoráveis para a formação regional de couraças nos depósitos fluviais. Datações de seis depósitos forneceram uma idade média de ~47ka. Em período correspondente, condições climáticas mais secas/frias foram evidenciadas por Ledru et al. (1996), Behling e Lichte (1997) e Ledru et al. (2009). Fase 3 Também seria iniciada após um pulso tectônico que deixou os níveis anteriores escalonados e pareados. As idades desta fase apresentam média de ~36ka. Oliveira (1992) e Ledru et al. (1996) indicam condições úmidas e frescas em período correspondente à Fase 3 no oeste de MG, com maior umidade a c. 35ka AP. Behling e Lichte (1997) analisaram testemunho na bacia do Ribeirão Coqueiros/Maquiné e não observaram tais condições, porém colocam registros cronocorrelatos à Fase 3 como testemunho de um clima ligeiramente mais úmido e menos frio que o subsequente. Fase 4 Os níveis da Fase 4 também são escalonados, evidenciando o soerguimento regional. Esta fase teria sido a última favorável ao desenvolvimento de couraças nos níveis fluviais (idade média de ~26ka) e também se destaca por ter gerado níveis de preenchimento em diversos vales, nos quais se encontram níveis mais recentes embutidos. Nos vales dos rios Maracujá, Mango, Conceição, Barão de Cocais e Caraça, os depósitos ainda ocorrem no fundo do vale (sem encaixamento da drenagem posterior à sua formação). O período entre ~25-16ka é considerado de generalizada aridez por Ledru et al. (1998). Behling e Lichte (1997) reconstituíram um cenário dominado por campos e estimaram temperaturas baixas, com frequentes geadas nos meses de inverno. Fase 5 Os níveis da Fase 5 também são escalonados e apresentam idade de ~8ka. O Ribeirão Sardinha é o único curso d’água de menor porte que apresenta registros desta Fase, no entanto não se observa encaixamento subsequente. Por outro lado, chama a atenção o encaixamento de até 15m nos vales dos rios Paraopeba e das Velhas, marcadamente recente. A Fase 5 corresponderia a um período seco verificado em MG por diversos autores (Ledru et al., 1996; Parizzi et al., 1998; Behling, 1995; 2003; Turcq et al., 2002; Enters et al., 2010). Fase 6 Corresponde à formação de planície de inundação em praticamente todos os vales. Porém, no vale dos rios das Velhas, Carioca e do Carmo é representada pelos N2, baixos terraços. Apenas no vale do Ribeirão Carioca se observa incisão no substrato rochoso após esta fase (1-2m), revelando encaixamento muito recente que poderia ser uma resposta tardia à incisão após a Fase 5 no vale do Rio das Velhas. A Fase 6 tem idade média de ~1,4ka e corresponderia à instalação do clima atual, entre ~4,6 e 0,6ka (Parizzi et al., 1998; Behling, 1995; 2003; Enters et al., 2010). Fase 7 Tendo em vista as características dos depósitos, sua provável idade (<1ka) e seu desenvolvimento rudimentar, os registros da Fase 7 seriam associados às alterações na dinâmica hidrossedimentar de algumas bacias provocadas por interferências antrópicas (desmatamento, garimpo, erosão acelerada). No vale do Ribeirão do Carmo, alguns depósitos apresentam objetos plásticos e de ferro, atestando a origem tecnogênica, além de sua composição faciológica indicar influências da exploração aurífera secular (Costa et al., 2010). Situado entre o Cráton do São Francisco e antigas faixas móveis e entre significativas descontinuidades crustais e eixos de soerguimento, o QF revela diversos indícios e evidências de atividade neotectônica (Saadi, 1991; Magalhães Jr. e Saadi, 1994; Marques, 1997; Sant’Anna et al., 1997; Lipski, 2002; Figueiredo et al., 2004; Bacellar et al., 2005; Salgado et al., 2007; Varajão et al., 2009; Lana e Castro, 2010; Magalhães Jr. et al., 2011; Barros e Magalhães Jr., 2013). Trata-se de uma tectônica ressurgente, que se aproveita de estruturas herdadas de ciclos geotectônicos antigos. Às movimentações induzidas por tensões intraplaca se soma a movimentação epirogenética induzida pelo equilíbrio das massas crustais em resposta à intensa desnudação regional. Sobre o condicionamento tectônico na evolução dos vales fluviais na região, pode ser destacado: formação de armadilhas tectônicas de sedimentos (no vale do Rio Conceição), deformação e falhamento de depósitos sedimentares (no vale dos rios das Velhas, Maracujá e Paraopeba), basculamentos (bacias dos rios Paraopeba e Maracujá), além de evidências de uma intensa dissecação do relevo por toda a região. Destaca-se o escalonamento dos níveis fluviais. As sete fases de formação de níveis fluviais são, em geral, separadas por períodos de encaixamento da drenagem. Assim, o escalonamento de níveis pareados em todos os vales pode ser considerado resposta ao soerguimento do Escudo Brasileiro, marcado, no entanto, por uma tectônica diferencial de blocos e por fases de maior atividade. Ao mesmo tempo, observa-se alternância entre fases sob clima mais úmido/quente com fases em períodos mais secos/frios. Isso pode reforçar a proposta de Bridgland e Westaway (2008) de que ciclos climáticos induziriam a movimentação tectônica responsável pelo escalonamento de níveis fluviais. Entretanto, seria forçoso ressaltar que o QF seria uma das raras áreas onde se observa um número grande de níveis dentro de um mesmo ciclo de 100ka (Bridgland e Westaway, 2008; 2014). Desse modo, caso haja uma resposta crustal às oscilações climáticas na região ela também seria sensível a ciclos climáticos mais curtos, possivelmente relacionados à obliquidade da órbita e à precessão dos equinócios. Isso porque, no QF, o intervalo médio entre as fases mais úmidas/quentes é de aproximadamente

Figura 1

Perfis transversais ideais da organização dos níveis fluviais na bacia do Alto-Médio Rio Paraopeba.

Figura 2

Perfis transversais ideais da organização dos níveis fluviais na bacia do Alto Rio das Velhas.

Figura 3

Perfis transversais ideais da organização dos níveis fluviais na bacia do Rio Doce.

Figura 4

Síntese dos dados de acordo com as fases regionais propostas. * Dado novo. ** Não considerada na idade média, pois não foi obtida em fácies de leito.

Considerações Finais

Ainda que incompletos, os registros deposicionais fluviais no Quadrilátero Ferrífero são componentes essenciais para a compreensão da geomorfogênese quaternária regional. Sete fases regionais de formação de níveis fluviais foram identificadas entre 1-83ka, embora ocorram escassos registros fluviais mais antigos em alguns vales. Há fases que não se encontram registradas em todos os vales fluviais, tendo em vista as condições variáveis para formação e preservação dos depósitos. A maioria das fases é seguida por períodos de encaixamento, sendo o último muito recente (~1ka). Além do escalonamento dos níveis fluviais, a atuação da neotectônica é constatada pela deformação de depósitos e deslocamento de níveis fluviais, basculamentos e armadilhas tectônicas de sedimentos, bem como pela peculiaridade na organização dos níveis em alguns vales. As fases de formação de níveis fluviais coincidem com oscilações climáticas, sendo as fases mais áridas/frias marcadas pela formação de couraças nas sucessões deposicionais (~26ka e ~47ka). As datações apresentadas revelam a jovialidade da paisagem fluvial, tendo em vista serem observados depósitos com ~50ka a até 60m acima da drenagem atual. A última fase de formação de níveis fluviais é provavelmente muito recente, podendo estar associada a interferências antrópicas desde o fim do século XVII no comportamento hidrossedimentológico dos canais e bacias hidrográficas da região.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo financiamento do projeto de pesquisa.

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