Autores
dos Santos, A.H.B. (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO) ; de Mello, M.A. (INSTITUTO FEDERAL DE SÃO PAULO) ; de Oliveira, D. (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO)
Resumo
O presente trabalho visa fornecer descrições de campo sobre depósitos sedimentares presentes em terraços fluviais localizados nas adjacências do cotovelo de captura do rio Capivari (São Paulo-SP) e suas idades, obtidas por meio da técnica da Luminescência Opticamente Estimulada (LOE). Diversas evidências da hipótese da captura do alto Capivari já foram apontadas na literatura: cotovelo de captura, ruptura no perfil longitudinal (knickpoint), vale seco e rio desajustado em relação ao vale, porém ainda são necessárias informações de campo para corroborá-la, tais como descrições dos sedimentos fluviais e datações dos mesmos. Busca-se obter uma idade aproximada para a captura e correlacioná-la a possíveis eventos geológicos ou climáticos contemporâneos, possíveis indutores do fenômeno.
Palavras chaves
Captura fluvial; Terraço fluvial; Luminescência Opticamente Estimulada (LOE)
Introdução
Captura fluvial é o rearranjo das linhas de drenagem no qual há transferência do fluxo de um rio a outro, executado pelo rio em posição altimétrica inferior, que intercepta e abstrai o rio em posição superior (BISHOP, 1995). São fatores para a ocorrência de capturas fluviais: variações litológicas (DUVALL et al., 2004; BABAULT et al., 2012) e estruturais (MORISAWA, 1985); movimentos tectônicos (MATHER, 2000a, b; MIKESELL et al., 2010); e transições climáticas (VANDENBERGHE, 1995; LOGET e DRIESSCHE, 2009). Os principais vestígios desses processos são: cotovelo de captura, ruptura no perfil longitudinal (knickpoint), vale seco, rio desajustado em relação ao vale e correlação mineralógica e morfoscópica de cascalhos entre os cursos decapitado e capturado (SMALL, 1977), além de padrão de drenagem "barbed" (PEDERSON, 2001). O rio Capivari, objeto desta pesquisa, localiza-se na borda meridional do Planalto Paulistano, próximo à Serra do Mar, no distrito de Marsilac, em São Paulo (SP) (Figura 1). Seu traçado incomum, que após segmento inicial sul- norte de aproximadamente 12 km sofre forte inflexão a leste, é atribuído a uma captura fluvial pós-pliocênica, ocorrida quando o rio, que originalmente rumava para a Bacia Sedimentar de São Paulo, sofreu interferência da drenagem litorânea em processo de marcha regressiva para o planalto (AB' SÁBER, 1957). Estudo recente apontou uma possível correlação entre a captura do rio Capivari e a formação da cratera de Colônia, ao norte, de idade provável oligocênica a pliocênica (SANTOS e OLIVEIRA, 2010). Capturas têm sido vinculadas à retração de grandes escarpas em margens continentais passivas em eventos espacialmente isolados e rápidos, como nos Ghats Ocidentais, Índia (HARBOR e GUNNELL, 2007) e nos Apalaches (PRINCE et al., 2010). No caso da Serra do Mar, sua regressão erosiva (ALMEIDA e CARNEIRO, 1998) tem sido vinculada à ocorrência de diversas capturas fluviais ao longo de sua extensão (OLIVEIRA, 2003; OLIVEIRA e QUEIROZ NETO, 2007; OLIVEIRA et al., 2010). Nota-se, nestes casos, que as interferências entre drenagens de gradientes desiguais têm como consequência a inversão gradual da direção geral da drenagem do planalto para o litoral, culminando em um extensivo “rejuvenescimento” na borda meridional do Planalto Atlântico (AB’ SÁBER, 1957). Além do forte gradiente altimétrico da escarpa, movimentos tectônicos recentes podem ter estimulado a ocorrência de capturas fluviais. Do Pleistoceno ao Holoceno, movimentações tectônicas foram responsáveis pelo contorno atual da distribuição de sedimentos e pela reativação de falhas inversas norte-sul (RICCOMINI et al., 2004). Essas movimentações afetam um conjunto de blocos, com amplitudes verticais de até centenas de metros, que controlam a dinâmica fluvial ao proporcionar zonas preferenciais de intemperismo, erosão e sedimentação (GONTIJO-PASCUTTI et al., 2012). Transições climáticas locais de condições áridas a úmidas (LEDRU et al., 2005) também teriam importância na elaboração da rede de drenagem do Capivari. A atividade fluvial na região foi caracterizada, nas fases mais áridas, por um aumento na erosão lateral e por maior participação do transporte de carga do leito (RÖMER et al., 2002). Já a mudança para condições mais úmidas na transição Pleistoceno-Holoceno teria conduzido a fortes fluxos de detritos e acumulação em leque, com posterior dissecação por incisão fluvial (THOMAS e THORP, 1995). A partir dessas considerações, o objetivo do presente trabalho é fornecer evidências de campo que auxiliem na interpretação da suposta captura do rio Capivari, tais como: descrições pedológicas em terraços fluviais adjacentes ao cotovelo de captura e datação por Luminescência Opticamente Estimulada (LOE) dos sedimentos fluviais encontrados no topo dos terraços, com vistas à obtenção de uma idade máxima para o aludido evento.
Material e métodos
O estudo da captura fluvial baseia-se nos critérios propostos por Small (1977) e Bishop (1995) para a identificação de evidências desses fenômenos, bem como na proposta metodológica de Oliveira (2003). Esta última propõe o uso de fotointepretação, de geoprocessamento e de evidências de campo para a descrição de elementos indicativos de condicionamento estrutural e dinâmico sobre a rede de drenagem. Em terraços fluviais adjacentes ao cotovelo de captura, realizaram-se trabalhos de campo com fins de descrição sedimentológica e coleta para datação por LOE. Um dos terraços (Terraço I) localiza-se em propriedade privada, na margem direita do Ribeirão Embura, próximo à confluência com o Rio Capivari. O outro terraço (Terraço II) localiza-se em propriedade da Sabesp, na margem esquerda do Ribeirão Embura, à frente do Terraço I. Materiais coletados nos perfis Terraço I (P1: 62 e 115 cm) e Terraço II (P2: 50 e 170 cm) foram encaminhados para datação por LOE. Além destes, coletou- se amostra de um terceiro perfil, adjacente ao perfil Terraço I, com características morfológicas semelhantes aos horizontes superiores deste (P1’), com profundidade de 50 cm. Os pontos de coleta são apresentados na Figura 2. A datação por LOE fornece a idade da última vez em que uma partícula sedimentar foi exposta a luz, assumindo-se que a partícula não manteve qualquer tipo de contato com a luz desde sua deposição e soterramento (FUCHS et al., 2014). Ambientes fluviais são particularmente desafiadores para datações por LOE, por haver neles condições propícias ao branqueamento parcial (HU et al., 2010; LAUER et al., 2010). Este introduz uma superestimação das idades, já que muitos dos elétrons anteriores não foram completamente removidos e somam-se aos novos (ZHANG et al., 2003). A coleta de sedimentos foi realizada em dois terraços fluviais, adjacentes ao cotovelo de captura do rio Capivari, nas camadas mais elevadas de material arenoso. Objetiva-se, deste modo, obter idades máximas de abandono do terraço e início da incisão fluvial, evitando-se os contatos entre estratos e removendo-se cerca de 50 cm de material superficial (FUCHS et al., 2014). Utilizou-se, para a coleta, tubo de PVC de cor escura com cerca de 60 cm de comprimento e 5 cm de diâmetro. O tubo foi inserido no perfil com uso de uma marreta e sua retirada foi realizada cuidadosamente, para evitar sua quebra. Após a retirada, o tubo foi lacrado com tampa de tubo de PVC e embalado em sacola plástica preta. As amostras foram enviadas para o laboratório Datação Comércio e Prestação de Serviços LTDA, em São Paulo (SP). Nas análises de laboratório, adotou-se o Protocolo SAR (Single-Aliquot Regenerative-dose) (MURRAY et al., 1995; WALLINGA et al., 2000), normalmente utilizado em datações de depósitos fluviais (RITTENOUR, 2008; RAMOS et al., 2012; FUCHS et al., 2014). Segundo a Datação S.A. (2015), aplica-se o protocolo SAR para se determinar uma idade média dentre pelo menos 10 a 20 alíquotas, a partir das quais constrói-se um histograma de idades para se interpretar a variação na amostragem. No caso específico desta pesquisa, o protocolo é aplicado a 10 alíquotas. A idade foi obtida a partir da relação De/Dr (JAIN et al., 2004) A dose equivalente (De) é calculada com base na comparação entre o sinal natural de luminescência da amostra adquirida após o soterramento e o sinal emitido após estimulação com uma dose conhecida. Já a dose anual (Dr) é calculada com base na atividade dos radionuclídeos Urânio (238U), Tório (232Th) e Potássio (40K) presentes na amostra, enquanto a última é estimada com base na latitude, na altitude e na profundidade da amostra. Dividindo-se a paleodose pela dose anual, obtém-se a idade do sedimento por luminescência (JAIN et al., 2004; LAUER et al., 2010; RAMOS et al., 2012).
Resultado e discussão
Trabalhos de campo foram realizados na bacia do rio Capivari, planejados
a partir de produtos cartográficos elaborados em trabalhos anteriores
(SANTOS e OLIVEIRA, 2010). Em campo, observaram-se elementos morfológicos
sugestivos de captura fluvial, tais como: um vale seco localizado entre as
bacias do Capivari e do Embu-Guaçu; níveis contrastantes de dissecação do
relevo, maior a jusante que a montante do cotovelo de captura; forte
encaixamento do curso do rio Capivari imediatamente a jusante do cotovelo,
indicando ajustamento para um novo nível de base; formação de padrão
“barbed” na bacia do Ribeirão Embura, sugerindo organização inicial da bacia
com saída para NW, a despeito do atual exutório a SE; e terraços fluviais a
montante do cotovelo de captura, tanto na sub-bacia do Alto Capivari quanto
na sub-bacia do Ribeirão Embura, com amplitudes de 10 a 15 m em relação ao
lago artificial que atualmente inunda o leito do rio na altura do cotovelo.
Em dois pontos localizados em terraços fluviais adjacentes ao cotovelo de
captura, realizaram-se trabalhos de campo com fins de descrição da cobertura
pedológica e coleta para datação por LOE. Um dos terraços (Terraço I)
localiza-se em propriedade privada, na margem direita do Ribeirão Embura,
próximo à confluência com o Rio Capivari. O outro terraço (Terraço II)
localiza-se em propriedade da Sabesp, na margem esquerda do Ribeirão Embura,
à frente do Terraço I. Seguem abaixo as descrições dos perfis pedológicos.
Perfil: Terraço I (Figura 2)
Localização: Estrada da Ponta Seca, s/n., cerca de 2,1 km da Estrada do
Marsilac, São Paulo – SP. Coordenadas: 23°55’02,34”S, 46°43’43,63”W.
Altitude: 759 m
Litologia: Sedimentos aluviais quaternários
Pedregosidade: pouco pedregosa
Relevo local: suave
Drenagem: bem drenado
Vegetação primária: Floresta Ombrófila Densa – Mata Atlântica
Uso atual: mata secundária
Horizonte 1 – 0-24 cm, pardo amarelado pálido (10YR6/2, seco e 5Y7/2,
úmido), arenoso, moderada, pequena e média, blocos subangulares e sub-
angulares, macia, friável, não plástica, ligeiramente pegajosa, transição
difusa e plana.
Horizonte 2 – 24-60 cm, cinza amarelado (5Y 7/2, seco e úmido), arenoso,
moderada, grande, blocos subangulares, macia, friável, ligeiramente
plástica, ligeiramente pegajosa, transição difusa e plana.
Horizonte 3 – 60-94 cm, cinza amarelado (5Y 7/2, seco e úmido), arenoso,
moderada, média, blocos subangulares, macia, friável, ligeiramente plástica,
ligeiramente pegajosa, transição gradual e plana.
Horizonte 4 – 94-135 cm +, amarelo sombrio (5Y 6/4, seco e úmido), areno
siltoso, maciça, cascalhos ausentes, macio, muito friável, não plástica, não
pegajosa.
Observações: presença de cascalhos nos horizontes 2 e 3, com maiores
clastos no horizonte 3 (até 6 cm no eixo maior)
Perfil: Terraço II (Figura 3)
Localização: Estrada da Ponta Seca, s/n., cerca de 2,9 km da Estrada do
Marsilac, São Paulo – SP. Coordenadas: 23°55'21,53" S, 46°43'41,88"W.
Altitude: 762 m
Litologia: Sedimentos aluviais quaternários
Pedregosidade: sem pedregosidade
Relevo local: suave
Drenagem: bem drenado
Vegetação primária: Floresta Ombrófila Densa – Mata Atlântica
Uso atual: mata secundária
Horizonte 1 – 0-7 cm, pardo acinzentado escuro (10YR4/2, seco e úmido),
arenoso, moderada, pequena, blocos subangulares, macia, solta, não plástica,
ligeiramente pegajosa, transição clara plana.
Horizonte 2 – 7-67 cm, amarelo pardacendo (10YR6/6, seco e 5Y7/6, úmido),
arenoso, moderada, média, blocos subangulares, ligeiramente dura, friável,
ligeiramente plástica, ligeiramente pegajosa, transição gradual plana.
Horizonte 3 – 67-110 cm, pardo amarelado (10YR5/4, seco e 10YR7/4, úmido),
areno argiloso, moderada, grande, blocos angulares, macia, muito friável,
plástica e pegajosa, transição difusa e plana.
Horizonte 4 – 110-180 cm +, cinza amarelado (5Y7/2, seco e molhado),
arenoso, maciço, solta, muito friável, não pegajosa e não plástica.
A respeito dos perfis pedológicos descritos em campo, elaboram-se as
seguintes considerações: predominância da fração arenosa em todos os
horizontes descritos, com maior participação de finos (silte e argila) nos
horizontes inferiores; cores mais claras nos horizontes inferiores, nos
perfis Terraço I e Terraço II, manifestando influência da fração arenosa
mineral, de natureza quartzosa, pouco pigmentada por óxidos de ferro ou
matéria orgânica; estruturas fracas a moderadas, quando presentes, devido à
baixa proporção da fração argilosa e matéria orgânica em todos os horizontes
descritos; transições planas e raramente graduais, possivelmente
relacionadas a descontinuidades deposicionais fósseis, progressivamente
alteradas pelos processos pedogenéticos. Acredita-se que se tratam de solos
pouco maduros, de tal modo que a pedogênese não teria atuado por tempo
suficientemente longo para destruir as estruturas sedimentares.
Materiais coletados nos perfis Terraço I (P1: 62 e 115 cm) e Terraço II
(P2: 50 e 170 cm) foram encaminhados para datação por LOE. Além destes,
coletou-se amostra de um terceiro perfil, adjacente ao perfil Terraço I, com
características morfológicas semelhantes aos horizontes superiores deste
(P1’), com profundidade de 50 cm. Os locais de coleta de amostras para
datação e os resultados obtidos são apresentados na Figura 4. Nota-se forte
correlação nas idades obtidas para ambos os terraços, sendo as idades
máximas de 16.750 anos no Terraço I e 18.150 anos no Terraço II. Já as
idades mínimas são de 8.290 anos no Terraço I e 8.150 anos no Terraço II.
Com os resultados da datação e reconhecendo-se as limitações da
metodologia utilizada, considera-se que o fecho de sedimentação do terraço
teria possivelmente ocorrido há cerca de 8.000 anos. A partir de então,
teria prevalecido a incisão, promovida pelo rio Capivari, possivelmente
desencadeado pelo processo de captura. Deste modo, a captura fluvial do rio
Capivari seria um fenômeno holocênico, não correlacionável à origem da
Cratera de Colônia, conforme proposto anteriormente (SANTOS e OLIVEIRA,
2010).
A incisão do rio Capivari, possível indutora da captura, é
correlacionável às mudanças climáticas da transição Pleistoceno-Holoceno,
cujos efeitos locais foram reconhecidos por Ledru et al. (2005), responsável
por uma substituição de gramíneas, adaptadas a climas mais secos e frios,
para arbóreas, condizentes com climas mais quentes e úmidos. Deve-se notar
que a mesma mudança climática não produziu terraços generalizados na região
sul de São Paulo, de tal modo que a captura fluvial permanece como essencial
para explicar a distribuição dos terraços fluviais, restritos ao entorno do
cotovelo do rio Capivari.
Localização da área de estudo. Elaborado pelos autores.
Localização dos perfis Terraço I e Terraço II. Elaborado pelos autores.
Sedimentos aluviais quaternários localizados nos perfis Terraço I (esquerda) e Terraço II (direita). Obtida pelos autores.
Resultados obtidos da datação de sedimentos aluviais. Elaborado por Santos, A. H. B., 2016.
Considerações Finais
O presente estudo traz dados que contribuem para corroborar a hipótese de que o alto curso do rio Capivari foi capturado pela drenagem litorânea, considerando-se as seguintes evidências: vale seco a noroeste do cotovelo de captura; níveis maiores de dissecação do relevo a jusante do cotovelo de captura; encaixamento do Capivari nas proximidades do cotovelo; padrão “barbed” na bacia do Ribeirão Embura e terraços fluviais a montante do cotovelo de captura. Nos referidos terraços, descrições em campo atestam a natureza arenosa dos sedimentos fluviais e as transições planas entre horizontes de solos ali formados, possíveis descontinuidades deposicionais fósseis. As datações realizadas em dois terraços adjacentes ao cotovelo sugerem uma importante incisão ocorrida há no máximo 8.000 anos, possivelmente promovida pela captura fluvial. A idade obtida é correlacionável à transição climática entre do Pleistoceno ao Holoceno, embora a inexistência de terraços em outros rios da região não permita descartar a hipótese da captura. Provavelmente, trata-se de um caso em que uma mudança climática induziu à ocorrência de uma captura fluvial. Futuros estudos deverão corroborar os dados de datação por LOE, tais como datação por 14C e uma descrição mais detalhada da estratigrafia dos terraços fluviais estudados. De todo modo, é possível dissociar qualquer correlação existente entre a formação da Cratera de Colônia e a captura do alto Capivari.
Agradecimentos
À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa de doutorado concedida. À FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo apoio à realização de análises laboratoriais.
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