Autores

Goerl, R.F. (UFSC/CENTRO CURITIBANOS) ; Michel, G.P. (UDESC/CEAVI) ; Kobiyama, M. (UFRGS/IPH)

Resumo

A conectividade enfatiza a transferência de água e sedimentos de um compartimento para outro em uma bacia. Esta transferência pode se dar por diversos processos, entre eles os fluxos de detritos. Este processo hidrogeomorfológico, além de promover a conectividade, causam modificações na paisagem, podendo ocasionar a desconectividade. Neste contexto, o presente artigo teve por objetivo analisar como um fluxo de detritos ocasionou a (des)conectividade em uma bacia experimental. A reconstrução da (des)conectividade foi analisada por meio do modelo DFLOWZ. Os resultados do presente trabalho demonstraram que quanto maior o volume inicial do fluxo de detritos maior a conectividade. Esta mesma condição de grande volume inicial associada a deposição a jusante também é a condição mais provável para gerar desconectividade. Assim, pode-se assumir que, quanto maior a conectividade, maior também a probabilidade de (des)conectividade.

Palavras chaves

conectividade hidrogeomorfológica; fluxo de detritos; DFLOWZ

Introdução

A conectividade é um assunto relativamente recente nas geociências, e teve o seu inicio associado à ecologia da paisagem. Conforme Pringle (2003), Merriam (1984) foi um dos primeiros autores a propor o conceito de conectividade da paisagem entre suas diferentes estruturas, enfatizando a interação entre espécies, determinando o fluxo de biota entre diferentes manchas de habitats. Atualmente outras áreas do conhecimento ligadas à dinâmica da paisagem têm dado ênfase à conectividade (MICHAELIDES e CHAPPEL, 2009). Por exemplo, a conectividade hidrológica enfatiza a transferência de água de um local para outro, incluindo a transferência de matéria associada a este fluxo (LEXARTZA-ARTZA e WAINWRIGHT, 2009) enquanto a geomorfológica a transferência de sedimentos por meio da ação da água (HOOKE, 2003, BRIERLEY et al., 2006, FRYIRS, 2013). No presente trabalho foi dada ênfase à conectividade hidrogeomorfológica, que é definida como a transferência de sedimentos e detritos lenhosos por processos hidrogeomorfológicos entre diferentes compartimentos da bacia hidrográfica, causando evolução da paisagem e desencadeando novas condições de contorno para os processos hidrológicos. Processos hidrogeomorfológicos são aqueles onde a ação da água promove alterações geomorfológicas na paisagem, que acarretam em novas condições iniciais ou de contorno para os processos hidrológicos, (SIDLE e ONDA, 2004; GOERL et al, 2012). Dentre os processos hidrogeomorfológicos mais expressivos, tem-se os deslizamentos, fluxos de detritos, fluxos hiperconcentrados e inundações bruscas. Nota-se que há um interesse mútuo entre as pesquisas relacionadas à hidrogeomorfologia e a conectividade, pois ambas buscam entender como a interação entre os processos da dinâmica superficial alteram a paisagem, ou seja, observam os processos hidrológicos como agentes indutores de modificação e evolução da paisagem. Ainda, observam as feições geomorfológicas, tanto na encosta como nos canais como uma assinatura dos processos hidrológicos ao longo do tempo. Por exemplo, a conectividade pode estar associada à transferência de sedimentos da encosta para o sistema fluvial ou pelo potencial de uma partícula se mover através desse sistema (BAARTMAN et al., 2013; BRACKEN et al., 2015; PARSONS et al., 2015). Esta transferência pode ser dificultada pela presença de feições geomorfológicas que agem como barreiras, como a planície de inundação, que “quebra” a declividade da encosta, diminuindo a energia do escoamento. Estes locais de ruptura ou perda de energia são pontos de desconectividade, que por sua vez pode ser observada tanto nas interações encosta-canal, encosta- encosta e canal-canal (BENDA et al., 2004; BRIERLEY et al., 2006; WARNER, 2006). Dentre os principais processos hidrogeomorfológicos, os fluxos de detritos podem ser considerados uma expressão completa da (des)conectividade. O seu inicio, na maioria das vezes, depende da ocorrência de um deslizamento que se conecta diretamente com o canal. Por outro lado, a deposição pode alcançar a planície de inundação, depositando em forma de leque, sem, contudo alcançar canais principais de ordem maiores, ou seja, nesse ponto o fluxo apresenta um aspecto de desconectividade. Além disso, ao se propagar pelos tributários, os fluxos de detritos podem formar barragens, promovendo a desconectividade do canal principal. Uma das maneiras de predizer o alcance de um fluxo de detritos é através de modelos empíricos e estatísticos. Rickenmann (1999) e Corominas (1996), analisando estatisticamente a geometria de diversos fluxos de detritos, propuseram relações empíricas entre o volume, a variação altimétrica e o comprimento total (alcance) do fluxo. Pode-se assumir que quanto maior o alcance do fluxo, maior a sua probabilidade de conectividade. Neste contexto, o objetivo do presente trabalho foi demonstrar como diferentes condições iniciais influenciam no alcance do fluxo e quais são as implicações na conectividade.

Material e métodos

O presente trabalho foi desenvolvido na Bacia do Rio Cunha, no município de Rio dos Cedros/SC. Esta bacia possui 16 km² e sua altitude varia entre 90 m e 840 m. Em 2008 diversos fluxos de detritos ocorreram na mesma e estudos relacionados à estabilidade de encosta e processos hidrogeomorfológicos vêm sendo realizados desde então (KOBIYAMA et al., 2010; MICHEL et al., 2014; 2015). Dentre estes fluxos de detritos ocorridos, um deles, situado no alto da bacia, provocou o barramento do rio principal. Poucos dias após a formação dessa barragem, um canal extravasor foi aberto pela prefeitura, devido ao receio de rompimento. Dessa maneira, o fluxo de detritos apresentou completa conectividade entre o tributário percorrido pelo fluxo e o canal principal, e também ocasionou a desconectividade da bacia, ao barrar o rio principal. A reprodução deste cenário bem como as suas implicações na (des)conectividade foi analisada por meio do modelo DFLOWZ, proposto por Berti e Simoni (2007; 2014). Este modelo permite realizar uma análise preliminar da área potencialmente atingida por um fluxo de detritos. DFLOWZ tem por base o método empírico-estatístico proposto por Iverson et al. (1998) para estimar a distância e a área afetada por fluxos de lama vulcânica (lahar). Ambas propostas assumem que, quanto maior o volume do fluxo de detritos (V), maior será a área do fluxo em uma seção transversal (A) bem como maior será a área planimétrica total afetada (B). DLOFWZ assume as seguintes formulações: A=ka·V2/3; B=kb·V2/3, onde ka e kb são coeficientes de mobilidade, cujos valores implementados no DFLOWZ são 0,07 e 18, respectivamente, determinados estatisticamente pela análise de 100 fluxos de detritos por Simoni et al. (2011). DFLOWZ requer como dado de entrada o Modelo Digital de Terreno - MDT (formato raster); o volume do fluxo de detritos em m³; e o caminho provável do fluxo (formato shapefile). As seções transversais podem ser inseridas em formato vetorial (shapefile) ou criadas automaticamente e interpoladas dentro do modelo. A base cartográfica utilizada no presente trabalho foi a disponibilizada pela Secretária de Desenvolvimento Sustentável (SDS) do estado de Santa Catarina, com precisão na escala 1:10.000. Foi utilizado um MDT com resolução de 1 m, disponibilizado pelo SDS, do qual foram removidos os sinks utilizando o TAUDEM (TARBOTON, 1997). Para a delimitação da cicatriz do fluxo de detritos foram utilizadas ortofotocartas com resolução de 0,39 m. O caminho provável do fluxo, dado de entrada do DFLOWZ, foi delimitado manualmente buscando reproduzir um caminho preferencial pré-evento, utilizando para isso aerofotos de 1978 (1:25.000). No ArcGIS foram criadas 55 seções transversais, com espaçamento de 10 m entre si. O volume inicial foi calculado com base nas equações de Corominas (1996) e Rickenmann (1999). A diferença entre estes dois volumes foi segmentada em cinco intervalos e analisado alcance para 5 diferentes volumes. Concomitantemente foi analisado como a variação do início da deposição pode influenciar na reconstrução da (des)conectividade. Para isto, foram escolhidos como inicio da deposição cinco locais (seções) para os volumes estimados com as metodologias propostas por Rickenmann (1999) e Corominas (1996).

Resultado e discussão

O fluxo de detritos ocorrido no alto da bacia do Rio Cunha percorreu, desde o seu inicio, 153 m, com uma variação atlimétrica de 570 m. Por meio desses parâmetros, foram calculados os volumes iniciais de 14.090 m³ e 207.770 m³ com as equações de Rickenmann (1999) e de Corominas (1996), respectivamente, o que apresenta uma diferença de aproximadamente 1.500%. Esta diferença foi dividia em 3 novos intervalos, totalizando 5 diferentes volumes. Observa-se que quanto maior o volume, maior o alcance do fluxo de detritos e maior a área afetada pelo mesmo (Figura 1). O volume da Figura 1b, referente à equação de Rickenmann (1999), percorreu apenas metade do caminho real. O volume da Figura 1f, equação de Corominas (1996), foi o que mais se aproximou do canal principal (rio Cunha), ou seja, que apresentou maior possibilidade de conectividade e formação de uma barragem, segundo os resultados do DFLOWZ. Nota-se que exceto para o segundo menor volume (Figura 1c), os demais cenários (Figuras 1d e 1e) apresentaram áreas mais extensas, ultrapassando a cicatriz mapeada, o que pode ser resultado de um volume superestimado em algumas seções transversais ou problemas na representação topográfica pelo MDT. Nestes cenários, foi considerado como ponto inicial da deposição a primeira seção de propagação do fluxo. Para analisar a influência do inicio da deposição na conectividade, foram considerados apenas os volumes de 14.090 m³ e 207.770 m³. Os canais que se sobrepõem a área de deposição foram considerados conectados, e os canais a jusante da deposição potencialmente conectados (Figura 2), ou seja, a completa conexão (transporte de matéria) depende de outros eventos de precipitação para transportar sedimento. Para o menor volume inicial, caso a deposição iniciasse próximo à cabeceira, apenas o tributário principal ficaria conectado, os demais tributários e o rio principal poderiam apresentar a conectividade potencial, associada à erosão do sedimento depositado pelo fluxo (Figura 2a). Quanto mais a jusante o início da deposição, (Figuras 2b, 2c e 2d), maior a possibilidade dos tributários secundários apresentar conectividade. A possibilidade de formação da barragem só foi alcançada considerando o início da deposição situando-se a cerca de 140 m a montante do canal principal (Figura 2e). As zonas de transporte e inicio, situadas a montante da deposição, em todos os cenários foram consideradas zonas de conectividade. Em relação ao maior volume, todos os cenários apresentaram uma conectividade, onde a deposição, mesmo iniciando apenas a 30 m do cabeceira (Seção 2) já apresentou pontos de conexão com o canal principal (Figura 3a e 3b). A conectividade total e a possibilidade de formação de uma barragem ocorreram para um início de deposição na seção 6 (Figura 3c), a 60 m do limite da cabeceira. A mesma situação pode ser observada para as seções 8 e 9 (Figuras 3d e 3e). Caso fossem consideradas seções a jusante da seção 9 para início da deposição, o alcance do fluxo ultrapassaria o vale principal (talvegue), avançando sobre o outro lado da encosta. Com base nos resultados dos dois cenários de volume, pode-se assumir que, levando em consideração apenas o volume inicial, quanto maior o volume, maior a possibilidade de conectividade e, consequentemente, de desconectividade no rio principal (barramento). Levando em consideração o local do início da deposição quanto menor o volume, mais a jusante deve ser a deposição para que haja conectividade entre o tributário e o rio principal e a possibilidade de desconectividade no rio principal. Por fim, nota-se que, dependendo do volume e do local da deposição, um fluxo de detritos pode ocasionar uma conectividade, conectividade potencial ou desconectividade. Em relação à hidrogeomorfologia, a deposição ocorrendo em diferentes locais dos tributários poderiam gerar uma disponibilidade de sedimentos, criando novas condições de contorno para os processos erosivos e evolução desta sub-bacia. Por outro lado, a formação da barragem poderia gerar, ainda que temporariamente, um nível de base local, ocasionando uma perda na energia do escoamento do rio principal. Assim, pode-se se assumir que, em termos hidrogeomorfológicos, quanto maior a conectividade encosta-canal, maior a probabilidade de desconectividade no rio principal.

Figura 1

Alcance dos fluxos para diferentes volumes: a) seções transv. e caminho do fluxo, b)14.090 m³; c)62.510 m³; d)110.930 m³; e)159.350 m³; f)207.770 m³

Figura 2

Conectividade para diferentes cenários com volume estimado por Rickenmann (1999): a)sec. 2; b)sec. 10; c)sec 20; d)sec. 30; e)sec. 40

Figura 3

Conectividade para diferentes cenários com volume estimado por Corominas (1996): a)seç. 2; b)sec. 4; c)sec 6; d)sec 8; e)sec. 9

Considerações Finais

Com base nos cenários propostos, observa-se que, tratando-se de conectividade, o volume inicial e o local do inicio da deposição, podem ocasionar uma situação de (des)conectividade associada a um fluxo de detritos. A deposição iniciando a jusante da cabeceira e com o maior volume já possibilitaria a conectividade entre o fluxo de detritos e o canal principal, ou seja, podendo ocasionar o barramento do rio principal. Nota-se também que o uso apenas de atributos geométricos para estimar o alcance esbarra em uma das deficiências encontradas no Brasil: a reduzida quantidade e qualidade dos dados topográficos. Mesmo com a resolução do MDT de 1 m, a falta de uma representação mais acurada do canal e os ruídos do MDT promoveram o extravasamento da área do fluxo, ultrapassando em alguns pontos os divisores. Contudo, pela simplicidade do modelo, o mesmo se mostrou relativamente eficiente para estudos preliminares de alcance de fluxo de detritos e a reconstrução de cenários associados à conectividade hidrogeomorfológica.

Agradecimentos

Referências

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