Reconstituição das alterações em canais fluviais urbanizados com base na cartografia histórica: bacia dos rios Guaxindiba/Alcântara (RJ)
Autores
Damasco, F.S. (IBGE/PPGG-UFF) ; Cunha, S.B. (PPGG-UFF/CNPQ)
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo levantar as diferentes lógicas de intervenções por obras de engenharia no ambiente fluvial, ao longo das diferentes temporalidades do processo de urbanização. Tendo como área de estudo a bacia dos rios Guaxindiba/Alcântara (RJ), localizada na borda leste da Baía de Guanabara, foram utilizados métodos de investigação em cartografia histórica, envolvendo a análise de cartas, mapas e a pesquisa documental e arquivística.
Palavras chaves
Geomorfologia fluvial ant; Ajustes nos canais; Cartografia retrospectiva
Introdução
Desde os anos 1960, muitos investigadores têm estudado as alterações nos rios por ações antrópicas, sobretudo na tentativa de elucidar as causas, características, localização e temporalidade dos efeitos ambientais concernentes às mudanças nos canais (CHIN & GREGORY, 2005; GREGORY, 2006; RODRIGUES, 2010; CUNHA, 2012, entre outros). Essas mudanças denunciam diferentes graus de degradação que, por sua vez, refletem o uso da terra de toda a bacia hidrográfica. O ambiente biofísico da bacia dos rios Guaxindiba/Alcântara (RJ), ao longo do século XX, foi bruscamente impactado pelo avanço dos loteamentos na cidade de São Gonçalo e a consequente transformação do solo agrícola em solo urbano. Nesse movimento de urbanização, muitas obras fluviais foram empreendidas no intuito de suportar a atividade industrial aquecida dos anos 1940-50, seja para aumentar a navegabilidade dos cursos d’água, facilitando o escoamento da produção, seja para tornar salubres as habitações da classe operária. O levantamento das obras realizadas nos canais e de seus impactos no ambiente biofísico é fundamental para o entendimento pleno das incongruências da relação sociedade/natureza, sobretudo, naquilo que impacta diretamente os sistemas fluviais. A importância do entendimento dessas obras no município é tamanha, tendo em vista que a população gonçalense se apropria culturalmente de seus rios tal como estão modificados, isto é, como “valões”, fazendo referência clara a função excretora dos rios urbanos no Brasil. Nessa conjuntura, o objetivo do presente trabalho é levantar as diferentes lógicas de intervenções por obras de engenharia no ambiente fluvial, ao longo das diferentes temporalidades do processo de urbanização.
Material e métodos
Localizada na borda leste da Baía de Guanabara e drenando uma superfície de 168,37 km², a bacia em estudo é formada pela sub-bacia do rio Alcântara e pela sub-bacia do rio Guaxindiba e engloba grande parte do município de São Gonçalo e pequenos trechos dos municípios de Niterói e Itaboraí. Para verificar o grau de alteração nos canais por obras de engenharia, foi priorizada a identificação de quatro formas principais de intervenção nos canais: retificações, alargamentos, aprofundamentos e desvios. A avaliação baseou-se no método da cartografia geomorfológica retrospectiva e da cartografia histórica, englobando a análise documental de mapas do acervo do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) disponíveis para consulta no Arquivo Nacional, com as aerofotogrametrias da FUNDREM (1975), as cartas topográficas da Baía de Guanabara (DSG, 1969, 1987) e da imagem de satélite Quickbird de 2006. O relatório deixado por Góes (1934) foi fundamental para o levantamento histórico das obras. A avaliação das alterações foi realizada pela sobreposição das drenagens, de modo a verificar quais foram os setores do rio mais impactados. Definir uma data inicial das interferências humanas sobre a bacia é extremamente difícil, uma vez que os órgãos oficiais competentes possuem registros esparsos e insuficientes. A Prefeitura Municipal de São Gonçalo (PMSG) não possui dados consistentes pelo fato de não possuir um arquivo organizado. Os arquivos técnicos da antiga Superintendência de Rios e Lagoas (SERLA), órgão criado em 1975 e extinto em 2009 para dar origem ao INEA, não fazem menção a nenhuma obra na bacia, indicando que as muitas retificações observadas nos rios principais tenham sido executadas em um período anterior a 1975. Some-se a essa dificuldade, o fato do município de São Gonçalo ter sido marcado pela autogestão habitacional, onde os moradores construíam suas casas por conta própria, sem supervisão da municipalidade, ignorando qualquer legislação urbana.
Resultado e discussão
A análise arquivística e documental permitiu a determinação de três momentos
distintos das intervenções por obras nos canais, relacionadas a diferentes
entendimentos da questão ambiental ao longo do século XX. O primeiro momento diz
respeito à lógica da navegabilidade e às primeiras canalizações. O rio
Guaxindiba foi um dos rios contemplados pelas obras da “Comissão Federal de
Saneamento e desobstrução dos rios que deságuam na Baía de Guanabara”, que
funcionou de 1910 a 1916, liderada pelo engenheiro Morais Rêgo. Seu objetivo era
a dragagem das barras dos principais rios, sua retificação, a contenção de
margens e construção de diques, e a abertura de canais na foz dos principais
rios para facilitar a navegação em baixa-mar. No rio Guaxindiba, as obras do
canal da barra foram realizadas em 1911, tendo o canal um comprimento de 3450 m,
desde a desembocadura, em áreas de manguezal, até o início do assoalho da Baía
de Guanabara. Alguns dos seus canais foram retificados para secar terras e
torná-las agriculturáveis. Para escoar a produção de cimento, foi aberto o Canal
de Guaxindiba, que ligava a fábrica ao rio Guaxindiba. Também foi construído
neste período o Canal do Cangurupi, um canal extravazador que serve de ligação
entre a bacia do rio Guaxindiba e a bacia do rio Macacu. Esse canal é palco
atualmente de intensos conflitos territoriais, porque possibilita que as águas
do Guaxindiba vazem pelo estuário do Macacu, que tem águas menos poluídas. Os
pescadores da foz do Macacu solicitam frequentemente à administração da Estação
Ecológica da Guanabara que feche o canal. De igual modo, em situações de
enxurradas na bacia do Macacu, as águas extravazam para a bacia do Guaxindiba,
diminuindo a velocidade do fluxo a montante. O segundo período delimitado diz
respeito às obras do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) no
contexto do crescimento urbano dos anos 1940-60, cujo principal objetivo era
secar terras úmidas. Nesse período, o principal intuito das obras era sanear a
planície dos rios principais, áreas que seriam destinadas a loteamentos. Essas
áreas, frequentemente, localizavam-se sobre remansos, meandros abandonados e em
áreas de inundações temporárias (leito maior excepcional e leito maior),
fundamentais para a manutenção da dinâmica fluvial natural. A retificação do rio
Alcântara coincide com o início do loteamento das fazendas do Laranjal, Júlio
Lima e Luís Caçador, que deram origem ao bairro do Jardim Catarina, considerado
o maior loteamento da América Latina. Na década de 1950, para sanear essa região
e diminuir os impactos das enxurradas, foi construído, em área de manguezal, o
Canal Isaura Santana, localizado junto à foz do rio Alcântara. Esse canal teve
por objetivo acabar com os excessivos meandros do rio Alcântara, em uma
tentativa de aumentar a velocidade de escoamento das águas. Na figura 1, pode-se
observar a comparação da drenagem extraída na década de 1940 e aquela extraída
em 1966. Embora haja uma pequena distorção, é possível verificar que os rios,
nesse intervalo temporal, tenderam à retificação, havendo uma explícita
diminuição da sinuosidade e dos pequenos meandros. No mapeamento de 1966,
constam muitos canais construídos nesse intervalo de tempo, com destaque para o
Canal Isaura Santana. O terceiro e último período delimitado refere-se às
mudanças empreendidas nos anos 1960-80. A abertura da rodovia Niterói-Manilha,
integrante da BR-101, no início dos anos 1980, atravessou o loteamento, levando
a ocupação da área norte do bairro rumo às áreas manguezais. Como a área está
localizada em ambiente manguezal, na foz dos rios Alcântara e Guaxindiba, a
recorrência das enchentes é grande. Por este motivo, entre 1966 e 1975 (anos
estimados pela análise dos mapas), foi construído um canal auxiliar para o
escoamento das águas do rio Alcântara, denominado canal de Guaxindiba (novo),
paralelo ao Canal Isaura Santana. A variação da rede de drenagem nesse período
pode ser observada na figura 2.
Comparação entre a rede de drenagem na década de 1940 e em 1966. Elaboração: Fernando Damasco, 2013.
Comparação da rede de drenagem em 1966 e 1975. Elaboração: Fernando Damasco, 2013.
Conclusões
O complexo de canais construído ao longo do século XX na bacia hidrográfica teria como principal objetivo acelerar a velocidade das águas, diminuindo a sua concentração na bacia hidrográfica. No entanto, ao longo dos anos, não foram feitas manutenções; as dragagens são esporádicas e insuficientes para evitar o assoreamento desses canais por lixo proveniente das áreas urbanas de São Gonçalo. A presença desses canais funciona, então, como um impeditivo ao fluxo do rio Alcântara, aumentando o tempo de concentração da água na bacia, o que, associado a eventos de maré alta, podem gerar eventos repetidos de enchentes. O uso da cartografia retrospectiva mostrou-se relevante e necessária na reconstituição dos eventos de modificação dos canais, fornecendo subsídios concretos para o entendimento da dinâmica dos ajustes nas diferentes temporalidades da urbanização, o que pode subsidiar um planejamento mais eficaz de políticas públicas de gestão e manejo de canais fluviais urbanizados.
Agradecimentos
Ao Arquivo Nacional, pela cessão dos mapas históricos do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS).
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