Anais: Geomorfologia cárstica

O primocarste. Um novo paradigma de carstificação e sua importância no carste não carbonático

AUTORES
Hardt, R. (INSTITUTO DO CARSTE) ; Rodet, J. (CNRS/UNIVERSITE DE ROUEN)

RESUMO
O conceito atual de carstificação determina a dissolução como o processo fundamental que condiciona o aparecimento das formas de relevo, mas não é necessariamente o processo dominante, podendo a erosão mecânica propiciar o desenvolvimento do carste após a dissolução ter determinado os caminhos, conduzindo a um sistema cárstico. Isto permite incluir rochas, cuja dissolução é mais lenta ou não congruente, como substrato para o carste.

PALAVRAS CHAVES
Processos carstificação; primocarste; carste não carbonático

ABSTRACT
The current concept of karstification state that the chemical dissolution is the process what will allow the development of the landforms, but is not necessarily the dominant process, and the mechanical erosion may develop karst after chemical weathering having determined the paths, leading to a karstic system. This allows to include rocks, which dissolution is slower or not congruent, as a substrate for Karst.

KEYWORDS
karst processes; prekarst; non carbonate karst

INTRODUÇÃO
O conceito de carste, desde o princípio, se baseou no processo de dissolução química da rocha encaixante como processo principal, senão único, para sua existência. A evolução do conceito vem passando por mudanças, e, atualmente, considera-se que a dissolução não é o processo necessariamente dominante, mas fundamental para o aparecimento de um carste, que a dissolução não precisa ser congruente, e pode deixar resíduos, e, principalmente, que o princípio da carstificação, ou primocarste, inclui uma fase de alteração isovolumétrica da rocha, com posterior colapso da estrutura alterada e retirada do material restante, seja por ação química ou mecânica, dependendo de fatores hidrológicos que irão condicionar um ou outro. Como consequência de tais considerações, pode-se explicar certos relevos, antes denominados como pseudocarstes, como sendo verdadeiras manifestações do carste, pois se demonstra que, embora em muitos casos a dissolução não foi o processo dominante, esta foi o processo condicionante (portanto fundamental), que permitiu o aparecimento do relevo. Também o conhecimento sobre a geoquímica vem demonstrando que, embora certos minerais sejam considerados insolúveis, estes o são em água pura, e, nas condições naturais, a água contém elementos em solução que permitem acelerar o processo de dissolução de minerais como a sílica por fatores significativamente maiores, fazendo com que a dissolução parcial da rocha ocorra rapidamente, permitindo que este se transforme no elemento condicionante da instalação do carste. Decorre disso que, para se caracterizar uma área como um carste, é preciso que a dissolução química seja o fator condicionante, e que os demais fatores sejam condicionados pelos caminhos fornecidos pela dissolução, e convirjam em um sistema dominado por condutos. Neste sentido, a carstificação inicial, ou primocarste, torna-se de fundamental importância para a definição de um sistema como um carste, e precisa ser compreendida.

MATERIAL E MÉTODOS
O estudo de campo desenvolvido em áreas que incluem as rochas carbonáticas tipicas do substrato cárstico, como o calcário, e áreas onde o substrato inclui uma porcentagem de carbonatos, como greda e calcarenitos, até ambientes formados por rochas silicosas sem conteúdo carbonático, como arenitos e quartzitos, que forneceram as evidências de que as formas desenvolvidas nestas rochas, embora possuíssem algumas particularidades entre si em função do substrato, convergiam, em geral, para o mesmo tipo de sistema morfológico. A cartografia destas formas, a morfometria e a documentação utilizando recursos como fotografia e Sistemas de Informação Geográficas, permitiu organizar o conhecimento e estabelecer a disposição dos elementos no contexto. Por fim, a revisão bibliográfica permitiu comparar as áreas de estudo com os padrões estabelecidos para um carste, e preencher lacunas não detalhadas no estudo, como fatores e condições de dissolução dos diferentes minerais.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A visão clássica de carstificação é omissa quanto à preparação das vias de água no maciço. Considera-se que as descontinuidades da rocha hospedeira fornecem as condições necessárias para um fluxo desde a perda nos platôs até a ressurgência nos vales. Esta conclusão precipitada é resultado da abordagem histórica, iniciada pelos geomorfólogos de superfície, na região de kras (Eslovênia), uma área intensamente afetada por tectonismo (FORD, 2002) e onde os calcários são relativamente puros, pouco permeáveis, restando a porosidade secundária como caminhos para o desenvolvimento da carstificação. Em um segundo momento, os espeleólogos aportam novas contribuições, mas a observação parou nas partes diretamente penetráveis. Hidrogeólogos demonstraram que a parte acessível, dificilmente excede uma pequena percentagem do volume de vazios utilizados pelas águas subterrâneas. Foi necessário que espeleólogos, removessem o preenchimento de condutos para que, na Europa ocidental, nos anos 1990, se percebesse que o carste também apresentava eixos de alteração que jamais se transformaram em vazios, e portanto, nunca percorridos por escoamento concentrado (RODET, 1996). Desta forma nasceu o conceito de primocarste, ilustrando as fases preparatórias do futuro dreno, delimitadas apenas pela alteração das rochas encaixantes, seguindo geralmente a estrutura, mas também, em pleno maciço, sem qualquer influência desta estrutura. Esta nova perspectiva permite compreender que o carste resulta da conjunção de dois tipos de processos. O primeiro, de ordem geoquímica, produz uma alteração isovolumétrica concentrada em pontos específicos (isoalterita). O segundo, que sucede o primeiro e a este se associa, ocorre quando a alterita colapsa, liberando um espaço que permite o fluxo (aloalterita). É um processo de ordem hidrodinâmica e calibra mecanicamente estes pontos de alteração, se uma solução de continuidade existir (ou seja, exista uma saída que permite o fluxo contínuo desde um ponto a outro, e um gradiente ou pressão hídrica que induza o fluxo). Entre estes dois pólos extremos, a carstificação se desenvolve segundo uma combinação de fatores variados, em função de dinâmicas mais ou menos eficazes, podendo ser singenética ou paragenética (fig. 1). Estes primeiros estados não são limitados aos sistemas iniciais. Pode-se observá-los em três condições: carste de introdução sob cobertura (carste de progradação e criptocarste), em meio ao maciço rochoso (núcleos de alteração), e sob preenchimento, nos drenos cársticos de restituição ainda ativos (efeito “esponja” do preenchimento). Se o carste resulta de uma alteração inicial da rocha, e a continuidade da evolução pode ser química ou mecânica, dependendo da solução de continuidade, não importa se a dissolução da rocha foi completa ou parcial, importa que a dissolução condicionou o aparecimento das formas, que podem ter evoluído mecanicamente. Sob esta perspectiva, o carste em rochas não carbonáticas se explica pela dissolução da rocha, completa ou não, e remoção mecânica dos resíduos da alteração, quando não houve a dissolução completa da rocha, mas uma solução de continuidade se estabeleceu, permitindo a existência de um fluxo. Mesmo no carste carbonático, não se pode excluir a erosão mecânica como processo formador. O carste resulta da mistura dos dois tipos de processos: geoquímicos e hidrodinâmicos, ocorrendo necessariamente o geoquímico (primocarste) nas fases inicias, mesclando-se os processos durante o desenvolvimento do sistema. Tal vem sendo demonstrado por trabalhos como os de Willems (2000), que apresenta exemplos do continente africano, e Hardt (2011), com exemplos no Brasil e na França.

Figura 1

Desenvolvimento do carste. 1. Primocarste (isoalterita e aloalterita); 2. da aloalterita à dinâmica paragenética. 3. da dinâmica paragenética à dinâmica singenética; 4. dinâmica singenética.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução do conceito de carste, e do conhecimento dos processos de como se produz a carstificação, conduzem para uma compreensão mais abrangente deste, incluindo sistemas antes desconsiderados pela limitação dos paradigmas anteriores. Como qualquer área do conhecimento, conforme novos dados são apresentados, novas hipóteses são propostas para explicá-los, levando a formulação de novos paradigmas. A visão atual da carstificação propõe que o carste pode evoluir em qualquer substrato rochoso, desde que haja penetração da água em meio aos maciços, condições químicas e hidráulicas adequadas e tempo suficiente para o desenvolvimento da alteração e posterior evolução. Portanto, para determinar se um determinado relevo é ou não um carste, precisa haver a manifestação inicial da carstificação, ou primocarste, e as formas resultantes devem formar um sistema de drenagens baseadas em condutos capazes de transportar massa e permitir o fluxo de energia de um ponto a outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
FORD, D. From pre-karst to cessation: The complicating effects of differing lithology and geologic structure on karst evolution. In: GABROVSEK, F. (Ed.) Evolution of Karst: From prekarst to cessation. Postojna-Ljubljana : Institut za raziskovanje krasa, ZRC SAZU, Zalozba ZRC, 448 p. 2002.

HARDT, R. Da carstificação em arenitos. Aproximação com o suporte de geotecnologias. À propos de la karsification dans les grès. Traitement par les technologies SIG. (Tese de Doutorado) Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. Em co-tutela com Morphodynamique Continentale et Côtière. Laboratoire de Géologie. Université de Rouen. 224 p. 2011.

RODET, J. Une nouvelle organisation géométrique du drainage karstique des craies : le labyrinthe d'altération, l'exemple de la grotte de la Mansonnière (Bellou sur Huisne, Orne, France). Comptes Rendus de l'Académie des Sciences de Paris, t. 322 (12), série II a: 1039-1045, 1996.

WILLEMS, L. Phénomènes karstiques en roches silicatées non carbonatées : cas des grès, des micaschistes, des gneiss et des granites en Afrique sahélienne et équatoriale. (Thése) Département des sciences géographiques. Université de Liege. 284 p. 2000.