Autores

Bernardelli, V.C. (UNESP) ; Lupinacci, C.M. (UNESP)

Resumo

A expansão urbana das cidades vem provocando mudanças nas formas de relevo e no sistema fluvial em diversas localidades. Assim, o objetivo deste trabalho foi identificar e analisar as alterações oriundas do processo de expansão urbana no setor sul da cidade de Araras (SP), fazendo uso dos princípios da Teoria Geral dos Sistemas. Para tanto, foi elaborada a carta geomorfológica de detalhe da área para os anos de 2010 e 2016, adotando as sugestões de Tricart (1965) e Verstappen & Zuidam (1975). A partir dos mapeamentos geomorfológicos, foi possível constatar o aumento da canalização dos cursos fluviais, das bacias de contenção, com destaque para o reservatório de retenção no Córrego do Facão (rio principal da área de estudo), dos aterros, cortes e do desenvolvimento de processos erosivos.

Palavras chaves

geomorfologia antrópica; cartografia geomorfológica; expansão urbana

Introdução

A apropriação e transformação do relevo vêm ocorrendo desde o surgimento do homem no Pleistoceno (CASSETI, 1991). Essas intervenções na natureza apresentam diferentes intensidades em cada momento histórico do homem (GOUDIE, 1981). Todavia, é a partir do século XVII (Era Moderna) que o homem vem impondo grandes mudanças na superfície terrestre através dos avanços culturais, científicos e econômicos (GOUDIE, 1981). Esses avanços ocasionados pela Revolução Industrial provocaram alterações nas formas de relevo por meio de cortes, aterros e canalizações dos cursos fluviais. A grande atuação antrópica na superfície terrestre é tamanha que Pellogia (2005, p. 24) destaca um novo período geológico: o Tecnógeno no qual “[...] a ação geológica humana ganha destaque significativo, no que tange aos processos da dinâmica externa, em relação à processualidade anteriormente vigente (holocênica).” Portanto, nota-se que o homem é considerado por alguns autores como um agente geomorfológico capaz de acarretar grandes transformações nas formas de relevo (NIR, 1983). A geomorfologia antrópica (NIR, 1983) ou antropogeomorfologia (GOUDIE, 2004) é uma área do conhecimento geomorfológico que busca estudar a ação antropogênica na criação de formas de relevo e modificação dos processos geomorfológicos que, antes, aconteciam de forma natural (GOUDIE, 2004). Para Rodrigues (2005), esta área do conhecimento geomorfológico constitui-se o estudo de ambientes que sofrem a interferência direta e indireta do homem nos processos, formas e materiais superficiais. Nir (1983) pesquisou como as diferentes atividades antrópicas com destaque para a consolidação do espaço urbano (estágios: pré-urbano, construção e final) impõem transformações tanto no relevo como no seu funcionamento. No Brasil, Rodrigues (2005) desenvolveu uma metodologia para identificar as seguintes morfologias: pré-urbana ou morfologia original (não apresentou grandes mudanças antrópicas) e morfologia antrópica (tem a interferência do homem, as quais podem ser detectadas pelos cortes, aterros, padrão dos arruamentos, entre outras feições).Diante de tais considerações o objetivo deste trabalho foi identificar e analisar as transformações hidro-geomorfológicas oriundas do processo de expansão urbana no setor sul da cidade de Araras (SP), situado na baixa bacia hidrográfica córrego do Facão (Figura 1). A escolha deste setor se justifica em função de problemáticas identificadas por Bernardelli (2015) as quais suscitam a necessidade de novas pesquisas na área. A identificação e análise das feições geomorfológicas foi feita por meio de uma cartografia geomorfológica de detalhe dos anos de 2010 e 2016.

Material e métodos

A orientação metodológica deste trabalho teve amparo nos princípios da Teoria Geral dos Sistemas. A área estudada foi entendida como um sistema não isolado aberto (inputs e outputs de energia e matéria) pela visão funcional, enquanto pela complexidade estrutural como um sistema controlado, pois tal área apresenta a interferência antrópica em toda a sua extensão (CHRISTOFOLETTI, 1980). Para alcançar a proposta da pesquisa, cartas geomorfológicas dos cenários do período de 2010 e 2016 foram elaboradas para identificar as mudanças hidro-geomorfológicas na área de estudo. O mapa geomorfológico é “[...] um tipo de mapeamento cuja complexidade é inerente ao próprio objeto de representação (CUNHA, MENDES E SANCHEZ, 2001, p. 2). ” A complexidade dos mapas geomorfológicos encontra-se na grande quantidade de informações que esta representação deve abarcar tais como: morfometria, morfografia, morfogênese e cronologia. Assim, a elaboração dessas cartas seguiu a proposta de Tricart (1965) e Verstappen & Zuidam (1975). Os dados morfométricos (curvas de nível, pontos cotados e cursos fluviais) foram vetorizados das cartas topográficas na escala 1:10.000, executadas pelo governo do Estado de São Paulo (1979). Enquanto a morfografia (as feições geomorfológicas) foi obtida por meio da fotointerpretação das ortofotos do ano de 2010 (concedida pela Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano SA – EMPLASA) e 2016 por meio das imagens do Google Earth®, com reambulação em campo. É interessante salientar que esses produtos citados anteriormente não apresentam estereoscopia, dificultando a identificação de algumas feições geomorfológicas como rupturas topográficas. A realização de trabalho de campo foi importante para sanar esta deficiência, além de dúvidas que surgiram no decorrer do processo de mapeamento para o cenário de 2016. Após o georreferenciamento das ortofotos e das imagens do Google Earth® e a identificação das feições geomorfológicas de origem natural e antrópica, partiu-se para a representação das mesmas (simbologia) as quais foram baseadas nas sugestões de Tricart (1965) - sulco erosivo, ravina, voçoroca, rupturas topográficas suave e abrupta, terraço agrícola, de Verstappen & Zuidam (1975) - vertente côncava, convexa, retilínea, marcas de erosão laminar, fundo de vale plano, em V; de Rodrigues (2005) - saída de drenagem canalizada; de Silveira (2009) - curso fluvial canalizado; de Mendes (2015): ruptura topográfica antrópica e canal artificial para escoamento de águas pluviais e de Zanatta (2014, 2017) - bacias de contenção. A construção dessa simbologia ocorreu em meio digital (software ArcGIS® versão 9.2) seguindo as orientações de Paschoal, Conceição e Cunha (2010). As simbologias criadas podem ser visualizadas nas figuras 2 e 3. Ressalta-se que foi necessário fazer algumas adaptações na construção das simbologias para a escala deste trabalho, a saber 1:10.000. Observa-se que a interpretação das imagens em meio digital gerou facilidade na vetorização das informações geomorfológicas por meio da ferramenta zoom, cálculo de extensão e área das mesmas e utilização de cores que auxiliaram na representação. Portanto, o software proporcionou uma otimização de tempo na execução do trabalho.

Resultado e discussão

Tanto a interpretação das ortofotos e das imagens do Google Earth® quanto o trabalho de campo evidenciaram o processo de expansão urbana do setor sul da cidade de Araras (SP). Essa expansão vem provocando grandes mudanças hidro-geomorfológicas e, consequentemente, na paisagem da área de estudo, que podem ser visualizadas nas cartas geomorfológicas (Figura 2 e 3). As feições hidrográficas sofreram significativas transformações oriundas do processo de urbanização as quais podem ser notadas na tabela 1. Os cursos fluviais de fundo plano diminuíram consideravelmente (1,998 km), pois os mesmos passaram por canalização (aberta) com destaque para o curso principal, Córrego do Facão na ordem de 1,898 Km (figuras 1 e 3). Neste sentido, é interessante destacar as canalizações em sistemas fechados situadas no bairro Doutor Narciso Gomes e Jardim dos Ypês (figuras 1 e 3). Já os cursos de fundo em V, os retilinizados e os canais pluviais não denotaram grandes mudanças, as quais podem ser observadas pelas cartas geomorfológicas (figuras 2 e 3) e tabela 1. Em relação às feições erosivas como marcas de erosão laminar, sulcos erosivos, ravinas e voçorocas se aumentaram em ambos os cenários. O desenvolvimento dos sulcos erosivos ocorreu nas periferias urbanas, em setores ainda dominados pelo cultivo de cana-de-açúcar mesmo com o emprego de técnicas conservacionistas (terraços agrícolas) assim como nas áreas de pastagem. É interessante ressaltar que os processos erosivos surgiram nos novos loteamentos (Jardim Bosque dos Ipês, Jardim Esplanada e Jardim Planalto) em virtude da retirada da vegetação para construção das casas, caracterizando o período de construção (NIR, 1983). Os sulcos erosivos e ravinas também foram detectados no trecho final dos arruamentos e nas margens de rodovias que aceleram a velocidade das águas pluviais e colaboram para o surgimento de tais feições. Constatou-se a presença de uma voçoroca de cabeceira mapeada sobre a litologia friável da Formação Piraçununga (areias e cascalhos) e próxima aos bairros: Jardim Dalla Costa, Jardim Bela Vista e Bosque de Versalles (Bernardelli, 2015). Atualmente, sua evolução está vinculada com a dinâmica do espaço urbano, pois as ruas no sentido do declive e as galerias de águas pluviais potencializam a velocidade da água em dias chuvosos em direção ao leito do curso fluvial, acarretando a evolução deste processo em direção a área urbana. Tal feição vem se intensificando ainda mais em função do estabelecimento dos novos loteamentos (Jardim Esplanada e Jardim Planalto) e que em dias chuvosos contribuem para acelerar e concentrar o escoamento superficial das águas pluviais. Ainda, as modificações provocadas pelo homem podem ser notadas pelas feições antrópicas mapeadas tais como: canal artificial para escoamento das águas pluviais, cortes, aterros, rupturas topográficas antrópicas, reservatório de retenção (conhecido popularmente como “piscinões”), bacias de contenção e canalização dos cursos fluviais. Os cortes e aterros foram detectados ao longo das rodovias Anhanguera (SP – 330/ BR – 050) e Wilson Finardi (SP – 191) e na construção de casas no Jardim Esplanada e do centro de distribuição da DPA (Dairy Partners America) localizado nas proximidades do Jardim Bosque dos Ypês. Já os aterros próximos ao córrego do Facão são uma tentativa de conter as águas das enchentes nos períodos chuvosos. Os canais artificiais para escoamento das águas pluviais assim como as bacias de contenção mapeados nas margens das rodovias Anhanguera (SP – 330/BR – 050), Wilson Finardi (SP – 191) e Carlos P. da Silva Telles (SP – 165) fazem parte do sistema de drenagem dessas vias de circulação. Tal fato demonstra como o homem é capaz de mudar o escoamento superficial natural para um “controlado”. As bacias de contenção foram identificadas no Jardim Bosque dos Ipês e Jardim Planalto como forma de amenizar a energia das águas pluviais e aumentar o tempo de retorno dessas, evitando a formação e o desenvolvimento de processos erosivos ao longo das margens dos cursos fluviais. No mapeamento geomorfológico do ano de 2016, verificou-se a construção de reservatórios de retenção de águas pluviais, conhecido como “piscinão”, com a finalidade de evitar enchentes ao longo do Córrego do Facão. O processo de urbanização acarretou mudanças nas vertentes e nas rupturas topográficas da área de estudo. A primeira pode ser notada, principalmente no Jardim Marabá, através do símbolo vertente côncava de cor vermelha. Com relação às rupturas topográficas, foi complicada sua identificação tendo em vista que as ortofotos e as imagens do Google Earth® não possuem estereoscopia. Entretanto, em trabalho de campo, percebeu-se a atenuação e o desaparecimento das rupturas naturais em detrimento da criação de rupturas antrópicas, evidenciando como o homem transforma o processo de evolução natural.

Figura 1

Localização da área de estudo

Figura 2

Carta Geomorfológica do setor sul - 2010

Figura 3

Carta Geomorfológica do setor sul - 2016

Tabela 1

Quantificação da extensão e área das feições geomorfológicas do setor sul da cidade de Araras (SP)

Considerações Finais

A análise dos produtos do sensoriamento remoto possibilitou averiguar a expansão urbana no setor sul da cidade de Araras (SP) e as alterações que a mesma vem passando. A identificação das feições naturais e antrópicas foi possível pelo emprego das técnicas da cartografia geomorfológica as quais se mostraram eficiente. Estas técnicas aplicadas em meio digital possibilitaram a quantificação das feições geomorfológicas. Portanto, constatou-se que o processo de urbanização provocou transformações tais como o aumento da canalização dos cursos fluviais, criação de reservatório de retenção (“piscinão”), bacias de contenção, cortes, aterros, rupturas topográficas antrópicas e mudanças nas formas de vertentes na área estudada. Nas áreas de expansão urbana (novos loteamentos) verificou-se o surgimento de marcas de erosão laminar, sulcos erosivos, ravinas e uma voçoroca em função da retirada da vegetação. As informações obtidas nesse trabalho permitiram o reconhecimento das características e do funcionamento do sistema geomorfológico, podendo auxiliar no planejamento ambiental e urbano assim como no uso da terra mais adequado as características do terreno. A consideração dessas características é importante, pois pode evitar a formação de processos erosivos e problemas de drenagem.

Agradecimentos

Referências

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