Autores

Pinton, L.G. (PROF. DR. DO IFSP - CÂMPUS SÃO CARLOS) ; Matos, A.L. (ALUNO DO ENSINO MÉDIO DO IFSP - CÂMPUS SÃO CARLOS)

Resumo

O presente artigo teve como objetivo demonstrar a potencialidade de aplicação de fundamentos da cartografia geomorfológica de detalhe no ensino médio para a apreensão da complexa questão da ordem taxonômica presente na classificação do relevo brasileiro. Para o desenvolvimento dessa proposta, foram utilizados os pressupostos teórico-metodológicos de abordagens da cartografia no ensino médio e da cartografia geomorfológica. O ensaio cartográfico forneceu subsídios à discussão da classificação do relevo brasileiro no ensino médio, constituindo-se em estratégia eficaz de aprendizagem desse conteúdo. Além disso, o mapeamento e análise de morfologias em escala local possibilitou ao discente o contato direto com outros fatos geomórficos de seu espaço vivido, auxiliando na atribuição de maior significado às distintas concepções geomorfológicas abordadas em sala de aula.

Palavras chaves

Geografia escolar; Cartas topográficas; Bacia hidrográfica

Introdução

A classificação do relevo brasileiro proposta por Ross (1985) para utilização no ensino médio foi concebida com base nos conceitos de morfoestrutura e morfoescultura, compreendendo ainda a questão da taxonomia do relevo. Diante da diversidade de estruturas geológicas e do quadro (paleo)climático do Brasil, o autor realizou algumas apropriações do arcabouço conceitual preconizado nos estudos de Gerasimov e Mescerjakov (1967) para sistematizar uma macrocompartimentação do relevo condizente à sua natureza morfogenética e ao elevado grau de generalização envolvido em sua representação. Nessa perspectiva, insere-se a ordem taxonômica do relevo, restrita aos três táxons maiores em razão da escala adotada para apresentação de seu mapa síntese. A complexidade inerente à fundamentação teórico-metodológica dessa proposição torna a abordagem desse conteúdo abstrata para os alunos do ensino médio, os quais tendem a realizar uma leitura reducionista da classificação. Apesar da inexistência de um levantamento sistemático sobre o modo como esses alunos desenvolvem cognitivamente esse conteúdo, a prática demonstra a construção de uma visão genérica sobre as unidades do relevo brasileiro, limitada à compreensão dos três tipos básicos de unidades geomorfológicas do país – planalto, planície e depressão – como terrenos homogêneos. Nessa conjuntura, verifica-se a necessidade da adoção de estratégias de ensino que permitam a retificação das deficiências existentes na compreensão desse conteúdo pelos estudantes do ensino médio e, consequentemente, viabilizem a incorporação em seu conhecimento da premissa de que uma macrounidade congrega a existência de formas menores individualizadas. No âmbito das competências estabelecidas nos parâmetros curriculares nacionais para a geografia no ensino médio, espera-se que os alunos utilizem recursos para a sua configuração como agente ativo na elaboração de documentos cartográficos. Acredita-se que o desenvolvimento desse exercício forneça subsídios para a diferenciação e estabelecimento de relações entre fenômenos geográficos em diferentes escalas. Ao considerar a natureza da temática em questão, verifica-se a possibilidade de adaptação de princípios da cartografia geomorfológica de detalhe para a investigação de morfologias locais que integram o modelado dominante das macrounidades, respaldando o processo de entendimento da representação do relevo e suas manifestações na paisagem. Assim, este artigo teve como objetivo demonstrar a potencialidade de aplicação de fundamentos da cartografia geomorfológica de detalhe no ensino médio para a apreensão da complexa questão da ordem taxonômica presente na classificação do relevo brasileiro. Para a operacionalização dessa proposição, foram considerados os dados contidos no mapa geomorfológico do estado de São Paulo de Ross e Moroz (1997), na escala 1:500.000, em razão dos seguintes fatores: 1. A sua concepção converge à proposta de Ross (1985) na representação parcial da taxonomia do relevo; 2. A sua legenda e o texto da memória técnica fornecem informações sobre os táxons passíveis de representação em escalas de detalhe, constituindo-se em referencial para a percepção da existência da diversidade de tamanhos e tipos de formas de relevo. Com o intuito de atribuir maior significado à concepção do espaço vivido pelo aluno, a bacia hidrográfica do Córrego da Água Fria – São Carlos (SP) foi selecionada como área de estudo para o mapeamento de morfologias em escala de detalhe. Essa bacia está localizada no setor centro-leste do estado de São Paulo, entre as coordenadas geográficas de 22º01’50” e 22º05’59” de latitude Sul e 47º52’43” e 47º57’02” de longitude Oeste, possuindo uma área de 28,8 km².

Material e métodos

A pesquisa foi fundamentada na adaptação da proposta metodológica de cartografia para o ensino fundamental e médio de Simielli (2011), sendo responsabilidade do aluno a execução e análise dos mapeamentos. A base de dados digitais da bacia do Córrego da Água Fria – São Carlos (SP) foi elaborada no ambiente do software AutoCAD® 2016, compreendendo o georreferenciamento das cartas topográficas que envolvem a área de estudo na escala 1:10.000 e a vetorização dos elementos de interesse à pesquisa (limite da bacia hidrográfica; cursos d’água; lagos; curvas de nível; pontos cotados; sistema viário e; toponímias). Ao considerar a dimensão da área de estudo, evidencia-se que essa etapa foi concluída em 30 dias. No processo de vetorização, destaca-se a adoção das recomendações de Rodrigues e Adami (2011) para a delimitação da bacia hidrográfica, e o procedimento de enriquecimento da drenagem proposto por Hubp (1988). Posteriormente, a base de dados foi transferida ao ambiente do software CorelDRAW X8 para a realização do mapeamento de morfologias do relevo. Esse processo foi executado com base na análise da configuração das curvas de nível e dos cursos d’água e, ainda, mediante a extração de informações sobre feições identificadas nas cartas topográficas. O reconhecimento de formas do relevo mediante a interpretação dos aspectos geométricos das curvas de nível foi fundamentado nas diretrizes de manuais técnicos de cartografia (FONSECA, 1973; IBGE, 1999; USGS, c2015) e na revisão da literatura geomorfológica (CASSETI, 2005; CHRISTOFOLETTI, 1974; GUERRA, 1972; GROTZINGER; JORDAN, 2013). Com o intuito de favorecer a operacionalização desse procedimento, foi estruturada uma chave de interpretação para a distinção das formas de vertentes e dos tipos de fundos de vale. A preferência por essas morfologias é justificada pela possibilidade de incitar o aluno ao desenvolvimento das relações desejadas entre os dados obtidos em seu mapeamento e aqueles contidos na legenda e na memória técnica da proposição de Ross e Moroz (1997), em específico, os aspectos das morfologias dos táxons menores contidos nas unidades morfoesculturais do relevo paulista. O conjunto de feições identificadas no mapeamento foi organizado conforme grupos de morfogênese definidos por Tricart (1965). Na representação das formas de relevo mapeadas, evidencia-se a utilização de símbolos das propostas de Tricart (1965) e Verstappen e Zuidam (1975). No processo de elaboração dessa representação, foram contabilizados 30 dias de trabalho. Para a condução da análise, correlação e síntese dos dados pelo estudante do ensino médio, foram formulados dois conjuntos de questões norteadoras, sendo o primeiro atrelado à distribuição espacial das morfologias obtidas no seu mapeamento em escala de detalhe, e o segundo direcionado à correlação de seus dados com as informações do mapa geomorfológico do estado de São Paulo de Ross e Moroz (1997). Os questionamentos do primeiro conjunto foram: 1. Como as formas de vertentes e os tipos de fundos de vale estão distribuídos na bacia hidrográfica? 2. Existe algum padrão na distribuição dessas morfologias? 3. Quais as possíveis razões para o padrão identificado no item anterior? Ressalta-se que o aluno foi orientado a quantificar os dados das formas de relevo mapeadas para a resolução do segundo questionamento. Previamente a realização do segundo conjunto de questões, houve uma apresentação da proposta de Ross e Moroz (1997) pelo docente, que forneceu a localização da área de estudo no âmbito das unidades morfoesculturais do referido sistema de classificação. O segundo conjunto de questões foi composto pelos seguintes itens: 1. Quais são as características principais da unidade geomorfológica do estado de São Paulo onde a sua área de estudo está localizada? 2. No item da legenda “Formas de relevo” do mapa geomorfológico do estado de São Paulo, existem informações que se assemelham às formas de relevo de seu mapeamento?

Resultado e discussão

Formas de vertentes. A análise da carta de morfologias do relevo da área de estudo (Figura 1) revelou a seguinte distribuição espacial das formas de vertentes: • Vertentes côncavas: associadas especialmente aos cursos d’água sazonais do alto e médio curso da bacia e; zonas de cabeceiras do curso d’água principal e afluentes de sua margem esquerda; • Vertentes convexas: predominantemente próximas às linhas de cumeadas; • Vertentes retilíneas: identificadas nas porções entre as convexas e as côncavas do alto curso da bacia e; ao longo do médio e baixo curso da bacia, em específico, nos setores de maior inclinação localizados nas margens do rio principal e afluentes; • Vertentes irregulares: nas áreas com maior declividade da bacia. No total, foram extraídas 92 vertentes na bacia do Córrego da Água Fria. De acordo com a análise da figura 2, verificou-se a maior expressividade de vertentes côncavas e convexas e, ainda, a existência em menor número de vertentes irregulares e retilíneas. Tipos de fundos de vale. A análise da carta de morfologias do relevo da área de estudo (Figura 1) demonstra o seguinte padrão da distribuição espacial da forma dos vales: • Vales em fundo plano: organizados predominantemente ao longo de toda a extensão do Córrego da Água Fria; no baixo curso de seus afluentes da margem esquerda e; a montante de represamentos presentes na bacia; • Vales em V: pequenos segmentos no alto curso do Córrego da Água Fria; nas zonas de cabeceira dos afluentes da margem esquerda e; a jusante das barragens identificadas na área de estudo; • Vales dissimétricos: identificados em curtos trechos do alto e baixo curso do Córrego da Água Fria; em pequeno compartimento circunscrito em afluente da margem direita localizado no alto curso e; nos setores do médio curso dos afluentes da margem esquerda do curso d’água principal. A quantificação dos dados do mapeamento da morfologia dos vales da bacia do Córrego da Água Fria evidencia a maior extensão de vales em fundo plano (Figura 3). A análise da figura 3 ainda revela a presença de compartimentos com vales em V e dissimétricos. Discussão sobre o padrão das morfologias mapeadas e a sua correlação com as macrounidades do mapa geomorfológico do estado de São Paulo. A numerosa quantia de vertentes convexas e côncavas mapeadas na área de estudo expressa, respectivamente, a influência da elevada umidade da dinâmica climática local, e o indicativo de sua fragilidade litológica. O predomínio de trechos mapeados com vales em fundo plano revela que a bacia do Córrego da Água Fria possui um perfil deposicional. Acredita-se que a reduzida variação altimétrica local (155 m entre o setor de nascente e foz), associada à liberação de sedimentos provenientes de possíveis processos erosivos nas vertentes, favorecem a configuração desse tipo de vale. De acordo com a proposição de Ross e Moroz (1997) para a representação do relevo paulista, a área de estudo está disposta em setor do Planalto Centro Ocidental composto basicamente por colinas amplas e baixas com topos tabulares (Dt11). Os autores destacam que essa unidade é caracterizada por uma fragilidade potencial baixa em razão da presença de formas de dissecação baixa, com vales pouco entalhados e densidade de drenagem baixa. Esse nível de fragilidade é identificado especialmente nos setores aplanados dos topos das colinas. No entanto, os setores de vertentes que são um pouco mais inclinados apresentam elevada suscetibilidade ao desenvolvimento de processos erosivos, sobretudo àqueles provenientes da concentração do escoamento superficial. Essa situação é condicionada pela presença de solos com textura média à arenosa (ROSS; MOROZ, 1997). Diante dessa conjuntura, admite-se que a maior extensão de trechos mapeados com vales em fundo plano remete aos atributos do padrão de formas semelhantes (Dt11) identificados por Ross e Moroz (1997) no Planalto Centro Ocidental, em específico, os seus vales pouco entalhados. Apesar das formas de vertentes mapeadas não fornecer um indicativo preciso à composição do padrão Dt11, a interpretação das curvas de nível da área de estudo permite a distinção da organização das colinas amplas e baixas com topos tabulares que integram a paisagem da área de estudo.

Fig. 1 - Carta de morfologias da bacia do Córrego da Água Fria

Mapeamento de morfologias do relevo executado por discente do ensino médio por meio da interpretação de dados das cartas topográficas.

Fig. 2 – Quantidade das formas de vertentes mapeadas

Gráfico do número total de vertentes identificadas na área de estudo.

Fig. 3 - Quantificação dos dados dos tipos de fundos de vales mapeados

Gráfico da extensão longitudinal em metros (m) dos tipos de fundos de vales mapeados na área de estudo.

Considerações Finais

A adaptação de princípios da cartografia geomorfológica de detalhe para a sua aplicação no ensino médio evidencia o seu potencial como recurso no processo de ensino-aprendizagem da geomorfologia nesse nível de ensino, permitindo ganhos significativos na discussão da classificação do relevo. A concordância com aspectos da descrição do modelado dominante em macrounidade geomorfológica de sistema de classificação demonstra que o mapeamento da morfologia dos vales pode auxiliar o aluno do ensino médio no entendimento da complexa questão da taxonomia do relevo. Apesar da utilização de mapa geomorfológico produzido em âmbito estadual, acredita-se que a estratégia adotada forneça subsídios ao estudante do ensino médio para tornar o modelo da macrocompartimentação do relevo brasileiro de Ross (1985) mais concreto à sua realidade. Por fim, ressalta-se que a consideração da escala local definiu maior significado às diversas concepções geomorfológicas envolvidas neste estudo e à construção do espaço vivido pelo aluno do ensino médio.

Agradecimentos

Ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de São Paulo (PIBIFSP) pelo apoio ao desenvolvimento da pesquisa.

Referências

CASSETI, V. Geomorfologia. [S.l.]: [2005]. Disponível em: <http://www.funape.org.br/geomorfologia/>. Acesso em: 9 dez. 2017. CHRISTOFOLETTI, A. Geomorfologia. São Paulo: Edgard Blücher, 1974. FONSECA, R. S. Elementos de desenho topográfico. São Paulo: McGraw-Hill, 1973. GERASIMOV, I. P.; MESCERJAKOV, J. A. Reljef Zemli (morfostruktura i morfoskulptura). Moscou: Nauka, 1967. GROTZINGER, J. P.; JORDAN, T. Para entender a Terra. Porto Alegre: Bookman, 2013. GUERRA. A. T. Dicionário geológico-geomorfológico. Rio de Janeiro: IBGE, 1972. HUBP, J. L. Elementos de geomorfologia aplicada: métodos cartográficos. Cidade do México: Universidade Nacional Autônoma de México, 1988. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Noções básicas de cartografia. Rio de Janeiro: IBGE, 1999. RODRIGUES, C.; ADAMI, S. F. Técnicas de hidrografia. In: VENTURI, L. A. B. (Org.). Geografia: práticas de campo, laboratório e sala de aula. São Paulo: Sarandi, 2011. p. 55-82. ROSS, J. L. S. Relevo brasileiro: uma nova proposta de classificação. Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, n. 4, p. 25-39, 1985. ROSS, J. L. S.; MOROZ, I. C. Mapa geomorfológico do estado de São Paulo: escala 1:500.000. São Paulo: FFLCH-USP; IPT; FAPESP, 1997. 2 v. SIMIELLI, M. E. R. Cartografia no ensino fundamental e médio. In: CARLOS, A. F. A. (Org.). A Geografia na sala de aula. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2011. p. 92-108. TRICART, J. Principes et méthodes de la géomorphologie. Paris: Masson, 1965. UNITED STATES GEOLOGICAL SURVEY – USGS. Dynamic topographic maps illustrating physical features. c2015. Disponível em: <http://nationalmap.gov/small_scale/100topos/index.html>. Acesso em: 9 dez. 2017. VERSTAPPEN, H. T.; ZUIDAM, R. A. van. ITC System of geomorphological survey: manual ITC textbook. Enschede, Holanda: ITC, 1975.