Autores

de Brito Macêdo, F.R. (UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI-URCA) ; Vieira Antunes, M.R. (UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI-URCA) ; Gomes de Sousa, S. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO-UFPE) ; Cardoso Ribeiro, S. (UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI-URCA)

Resumo

Este trabalho tem o objetivo de analisar o etnoconhecimento dos produtores familiares das comunidades Triângulo e Tatajuba no município de Abaiara/CE, acerca das formas de relevo e seus processos, também como usam este conhecimento no manejo do solo. Essa pesquisa consistiu em levantamento bibliográfico para a compreensão do conceito de Etnogeomorfologia, cartográfico para o reconhecimento prévio da área de estudo, e partindo desse material foi produzido o roteiro de entrevistas o qual foi aplicado com os produtores rurais. Com a análise dos dados obtidos, foi possível compreender que os entrevistados possuindo uma longa vivência com seu espaço produtivo passaram a organizá-lo de acordo com suas potencialidades e fragilidades. Assim a Etnogeomorfologia é importante para a valorização do saber popular do homem sertanejo, podendo ainda facilitar o diálogo entre a academia e essa população.

Palavras chaves

Geomorfologia; Etnoconhecimentos; Comunidades tradicionais

Introdução

O nordeste brasileiro está localizado em uma região semiárida, a qual caracteriza-se por possuir longos períodos de secas e estação chuvosa concentrada em menor parte do ano, o que resulta em processos denudacionais particulares nessas áreas. Frente a essa realidade o homem nordestino vem desenvolvendo formas de produzir contornando tais fragilidades ambientais, e as técnicas de manejo utilizadas são resultado do conhecimento empírico, o qual vem sendo repassado por várias gerações que vão aprimorando-as. Como exposto por Ribeiro (2012), as decisões políticas inseridas nessas regiões nem sempre são compatíveis com as suas realidades ambientais, podendo acentuar os problemas já existentes, os quais eventualmente seriam minimizados se os conhecimentos da população, sobre a dinâmica ambiental fossem levados em consideração na elaboração de novos projetos. Segundo Diegues (1996) a etnociência é um dos enfoques que têm contribuído para os estudos do conhecimento das populações tradicionais, pois “parte da linguística para estudar o conhecimento das populações humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e classificações totais.” (DIEGUES, 1996, p. 78). Dentre as etnociências é importante destacar a Etnoecologia, uma ciência pós-normal que estuda as sabedorias tradicionais, discute os principais traços do conhecimento tradicional, como são transmitidas suas práticas e quais são seus resultados simbólicos práticos (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2009). Partindo da Etnoecologia, a Etnopedologia analisa o conhecimento pedológico que as populações tradicionais possuem, Matos et al (2014) coloca que a abordagem Etnopedológica vem facilitar “o resgate do saber tradicional e possibilita a interlocução deste com o conhecimento do meio científico, agilizando a caracterização dos solos e dos ambientes do território e subsidia o planejamento de uso sustentável das terras”. (MATOS et al. 2014, p. 498). Assim como a Etnopedologia, a Etnogeomorfologia apoia-se na Etnoecologia, e surge a partir da relação dos estudos geomorfológicos com a Etnociência, buscando analisar os saberes tradicionais que uma comunidade possui acerca dos processos morfoesculturadores da paisagem. Assim, Ribeiro conceitua a Etnogemorfologia como: [...] uma vertente da Geomorfologia que busca identificar e sistematizar os conhecimentos sobre formas e processos do relevo que comunidades de cultura tradicional produziram ao longo de gerações e hoje são utilizadas no modo como organizam seu espaço produtivo – espacialmente e agropastoril. (RIBEIRO, 2016, p. 178-179) Com isso, esse trabalho tem o objetivo de analisar o etnoconhecimento dos produtores familiares das comunidades Triângulo e Tatajuba no município de Abaiara/CE, acerca das formas de relevo e seus processos, e também como usam este conhecimento no manejo do solo.

Material e métodos

Partindo dos conceitos e metodologia de Ribeiro (2012), sobre Etnogeomorfologia Sertaneja na sub-bacia do rio Salgado/CE, os procedimentos metodológicos dessa pesquisa se dividiram em quatro fases: 1ª Fase: foram realizadas leituras relacionadas aos conceitos básicos de geomorfologia, como também da Etnociência para se chegar a compreensão do conceito de Etnogeomorfologia. Além disso foi feito um levantamento das características geoambientais da área de estudo. Foram explorados mapas digitais para identificar a área de pesquisa como também foram utilizadas bases cartográficas disponibilizadas pelo IBGE (2015) para a elaboração de novos materiais cartográfico no SIG Qgis 2.18.3. 2ª Fase: consistiu na coleta de dados em campo, através de entrevistas com os moradores das comunidades citadas, no intuito de identificar a sua percepção ambiental geral, os seus saberes acerca dos processos morfoesculturadores e as suas experiências cotidianas no campo. Durante as entrevistas foram utilizadas imagens de cicatrizes erosivas em diversos estágios do processo, para ajudar os entrevistados na identificação destas feições sem interferir em sua taxonomia particular. As áreas de produção também foram visitadas, para identificar como se dá a aplicação desse conhecimento no uso e manejo do solo. 3ª Fase: as respostas foram organizadas em um quadro onde foram identificados os saberes comuns dos entrevistados, chegando a um diagnóstico acerca do etnoconhecimento das comunidades e sua aplicação no manejo do solo. 4ª Fase: foram elaborados quadros de correlação dos conhecimentos etnogeomorfológicos e os geomorfológicos acadêmicos, em seguida foram traçados perfis topográficos de cada comunidade estudada na ferramenta 3D Path Profile/Line of Sight do software Global Mapper 16, usando como base as imagens de SRTM, para mapear as formas de relevo na classificação acadêmica e na etnogeomorfológica, na busca de uma identificação entre as duas formas de compreensão e classificação da geomorfologia local.

Resultado e discussão

O município de Abaiara/CE está localizado no sul do Ceará situado nas coordenadas geográficas de 7° 21’ 32” S e 39° 02’ 44” WGr (Figura 1). O município possui cerca de 10.496 habitantes distribuído em uma área de 179,91 km² (IBGE, 2016; IPECE, 2016) na encosta da Chapada do Araripe, possui superfícies aplainadas retocadas ou degradadas, morros e serras baixas, sua litologia é constituída por sedimentos sílticos-argilosos, sedimentos arenosos e calcário com intercalações sílticos-argilosas (CPRM, 2014). As classes de solos que se desenvolvem no município são: Argissolo Vermelho–Amarelo, Vertissolo Háplico, Neossolo Flúvico e o Neossolo Litólico (FUNCEME, 2012). A escolha das duas comunidades se deu por conta da sua localização, o Sítio Triângulo por estar situado em uma área de superfícies aplainadas e o Sítio Tatajuba em uma área de morros e serras baixas, sendo a parte mais elevada do município, e com isso obter informações de áreas diferentes e consequentemente percepções distintas. No Sítio Triângulo foram entrevistadas onze pessoas, sendo oito homens e três mulheres, com idades entre 27 a 75 anos, e apenas um dos entrevistados possui o Ensino Médio completo, o restante não chegou a concluir o Ensino Fundamental ou nunca frequentou a escola. A exploração agrícola é predominante na comunidade, sendo que dos entrevistados 82% são agricultores e 18% são agropecuaristas; destes, 45% produzem em terra arrendada, 36% produzem em terra própria e os outros 19% produzem de “meia” ou em terra de favor. Os produtores dessa comunidade exploram principalmente a cultura do milho e a do feijão, foram citadas outras culturas as quais não têm muita expressão na produção. Alguns entrevistados relataram que já exploraram a cultura do arroz, mas que nos últimos anos passou a ser inviável pois é necessário a utilização da irrigação, já que as chuvas não têm sido suficientes. Além disso, eles escolhem as áreas de cultivar de acordo com a fertilidade do solo e o tipo de relevo, os quais são inter-relacionados, a partir disso direcionam onde implantar as culturas. No Sítio Tatajuba foram entrevistadas dez pessoas, sendo seis homens e quatro mulheres, com idades entre 23 a 69 anos. Dos entrevistados, dois nunca estudaram, cinco concluíram o Ensino Fundamental e três são graduados, 50% são agricultores e 50% são agropecuaristas, destes, 40% produzem em terra arrendada, 60% produzem em terra própria. Os produtores escolhem as áreas de cultivar de acordo com a fertilidade do solo e o tipo de relevo, os quais entendem como inter-relacionados, a partir disso direcionam onde implantar as culturas. De acordo com a área cultivada a forma de plantar também é adaptada, um dos entrevistados afirmou que quando planta na “baixa” as “carreiras” são mais próximas, já na “lombada” é mais larga, pois se plantar muito próximo as plantas ficam com tons amarelados, isso ocorre devido a disponibilidade de nutrientes no solo. Nas duas comunidades as técnicas aplicadas no manejo do solo ainda são tradicionais, na maior parte dos casos, as áreas são exploradas durante dois ou três anos, pois com o tempo o solo vai chegando a exaustão, como os agricultores costumam dizer “a terra fica cansada”, então a deixam “descansar”, no mínimo por dois anos, com a recuperação da vegetação nativa é realizada a “broca”, prática muito utilizada no preparo da terra para o plantio (essas áreas segundo os agricultores passam a ficar mais férteis após a realização da broca). É importante ressaltar que isso pode variar de acordo com o tipo de relevo, pois cada um desenvolve processos diferentes. As áreas mais elevadas são utilizadas por menos tempo, pois os solos esgotam seus nutrientes mais rápido, já as áreas mais baixas são utilizadas por mais tempo, por haver maior disponibilidade de nutrientes no solo e por serem mais fáceis de manejar, assim ao invés de deixar a área “descansar” o agricultor faz a aplicação de adubos ou fertilizantes, podendo utilizar a terra por mais tempo. A forma de classificar o relevo e seus processos é bastante similar entre os entrevistados das duas comunidades. Na comunidade Tatajuba foram entrevistadas três pessoas com Ensino Superior completo, o que as diferenciam dos demais entrevistados é a utilização de uma linguagem um pouco mais trabalhada, resultante de um conhecimento sistematizado, diferente dos entrevistados que tem pouca escolaridade ou daqueles que nunca estudaram, estes por sua vez, utilizam nomenclaturas mais peculiares adquiridas na relação com seu espaço produtivo e seus pares. No Sítio Triângulo de modo geral os relevos são apontados como “altos”, “planos” e “baixos”, nos “altos” vão se localizar as “serras” e as “quebradas”, os “baixos” são áreas de fundo de vale denominado de “baixi/baixio” e os “planos” tanto vão ser utilizados para denominar as “chapadas” como os “baixis/baixios”. Já no Sítio Tatajuba os entrevistados apontaram o relevo como “altos” e “planos”, nos “altos” vão se localizar as “serras”, os “pés de serras” e as “lombadas e morros”, os “planos” vão se localizar os “baixis/baixios”, diferente da comunidade do Triângulo que também era usado para apontar a “chapada”. As unidades etnogeomorfológicas indicadas pelos produtores foram representadas através de perfis topográficos, como mostram as figuras 2 e 3. Foi relatada a ocorrência dos processos erosivos nas duas comunidades, no Sítio Tatajuba a maior parte dos entrevistados associa o seu desenvolvimento apenas com a intensidade das chuvas, já no Sítio Triângulo os entrevistados vão associar o crescimento das feições erosivas não só a intensidade da chuva, mas ao tipo de relevo que pode proporcionar o aceleramento. Ainda é importante ressaltar que os entrevistados das duas comunidades compreendem a importância de manter a vegetação nessas áreas para manter o controle do desenvolvimento dessas feições erosivas. Quanto aos movimentos de massa no Sítio Triângulo não foi relatada a ocorrência, e no Sítio Tatajuba apesar de existir a ocorrência desses movimentos, os entrevistados não souberam detalhar como ocorrem, afirmaram apenas que acontece quando as chuvas são fortes e nomeiam de “deslizamento” e “desabamento”.

Figura 1: Localização da área de estudo

Fonte: Bases cartográficas disponibilizadas pelo IBGE (2015) e elaborados pelas autoras.

Figura 2: Perfis topográficos do Sítio Triângulo, Abaiara/CE

Figura 2 – Perfis topográficos das unidades etnogeomorfológicas indicadas pelos produtores do Sítio Triângulo, Abaiara/CE. Fonte: autoras, 2017

Figura 3: Perfis topográficos do Sítio Tatajuba, Abaiara/CE

Figura 3 – Perfis topográficos das unidades etnogeomorfológicas indicadas pelos produtores do Sítio Tatajuba, Abaiara/CE. Fonte: autoras, 2017

Considerações Finais

A vivência do homem nordestino no campo, ao longo dos anos, resultou em um vasto conhecimento acerca do seu ambiente de produção, capaz de compreender os processos que ocorrem, passando a desenvolver técnicas de manejo do solo que correspondam à fragilidade da área explorada, possuindo ainda formas peculiares de classificar a paisagem. Quanto às comunidades trabalhadas, mesmo com as dificuldades encontradas por parte dos entrevistados no reconhecimento dos processos erosivos, foi possível identificar os seus saberes comuns, desde as denominações utilizadas para classificar o relevo e seus processos correlatos. É muito importante reconhecer os saberes tradicionais para um melhor planejamento das comunidades rurais. A cultura do homem nordestino deve ser respeitada, tendo seus saberes e suas tradições valorizadas, para serem integradas e aprimoradas junto aos conhecimentos técnicos, podendo assim chegar a um melhor ordenamento local. Com isso a Etnogeomorfologia pode ter um papel importante para o desenvolvimento das comunidades tradicionais, e se faz necessário que o poder público ao tomar decisões direcionadas ao ambiente em que essas populações vivem, atue respeitando o seu modo de vida, podendo ainda integrar os etnoconhecimentos na elaboração de novos projetos.

Agradecimentos

Agradeço ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC e a Universidade Regional do Cariri - URCA pelo financiamento da pesquisa, à minha Orientadora Dra. Simone Cardoso Ribeiro pelo apoio e dedicação, aos colegas do Laboratório de Geomorfologia e Pedologia – Geoped/URCA e aos agricultores que se disponibilizaram em participar das entrevistas.

Referências

CPRM, Mapa Geodiversidade do Estado do ceará. Fortaleza: Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, 2014. Disponível em: <http://www.cprm.gov.br/publique/media/geodiversidade_ceara.pdf> Acesso em: 02/09/2016.
DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.
FUNCEME, Levantamento de Reconhecimento de Média Intensidade de Solos – Mesorregião do Sul Cearense. Fundação Cearense de meteorologia e Recursos Hídricos, Fortaleza: 2012. 280 p.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE Cidades: Abaiara. Disponível em: <http://cod.ibge.gov.br/1PH0> Acesso em: 24/12/2016.
IPECE. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Perfil Básico Municipal de Abaiara - 2016. Disponível em: <http://www.ipece.ce.gov.br/perfil_basico_municipal/2016/Abaiara.pdf> Acesso: 22/12/2016.
MATOS, V. L. et al. O conhecimento local e Etnopedologia no estudo dos agrossistemas da comunidade quilombola de Brejo dos Criolos. Sociedade & Natureza, v.26, n.3, p.497-510, 2014.
RIBEIRO, S.C. Etnogeomorfologia sertaneja: proposta metodológica para a classificação das paisagens da sub-bacia do rio Salgado/CE. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGG, 2012. 278 p. (Tese de Doutorado).
RIBEIRO, S.C. Etnogeomorfologia na Perspectiva da Gestão Ambiental e Aprendizagem na Educação Básica. Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 6, N.1, p. 175-190, 2016.
TOLEDO, V. M.; BARRERA-BASSOLS, N. A Etnoecologia: uma ciência pós-normal que estuda as sabedorias tradicionais. Desenvolvimento e Meio Ambiente. n.20, p.31-45, jul/dez. Editora UFPR, 2009.