Autores

Pinheiro, M.V.A. (URCA)

Resumo

A zona costeira cearense possui vasto campo de dunas com dinâmica peculiar. Essa dinâmica é controlada em parte pelas áreas de promontórios que abrangem campos de dunas responsáveis pela alimentação de praias, o bypass ou transpasse costeiro. O objetivo desse artigo é apresentar o mecanismo de transpasse costeiro, a partir da aplicabilidade do estudo para a zona costeira do Pecém, Estado do Ceará. A situação atual de ocupação ou interferência no trânsito sedimentar foi identificada, com obstrução antrópica desse transpasse. Com a continuidade da redução das dunas de transpasse pode-se gerar consequências negativas em áreas que já passam por processos erosivos e iniciar esse processo onde ainda há equilíbrio sedimentar. Nesse sentido, propomos que essas áreas sejam mais intensamente estudadas com a realização de mapeamentos atuais e pretéritos, criação de áreas protegidas e acompanhamentos regulares para uma gestão costeira adequada.

Palavras chaves

Zona Costeira; Pecém; Dinâmica Eólica

Introdução

Os campos de dunas se dispõem ao longo de praticamente todos os 573 km da zona costeira do Estado do Ceará, sob condições morfodinâmicas diferenciadas, relacionadas primordialmente à presença (ou não) de promontórios, praias, dunas, além do próprio inter-relacionamento entre esses elementos. Os setores costeiros com a presença de promontórios (pontas litorâneas) apresentam uma particular e importante dinâmica sedimentar que abrange o sistema de praias e dunas, e interferem diretamente no comportamento dessas feições geomorfológicas. Por outro lado, nos setores onde não há ocorrência de promontórios, os sedimentos migram livremente até encontrar outros tipos de obstáculos (geralmente a foz de um rio) e se depositarem, formando os campos de dunas. Nesses setores de promontórios, em costas dominadas pela deposição de sedimentos ocorrem os chamados “headland bypass dune field” tratado pela primeira vez por Tinley (1986). Na faixa continental, nessa ação os campos de dunas transpassam o promontório e chegam na enseada à sotamar, realimentando a faixa de praia e realizando o transpasse ou bypass costeiro. Já a nível marinho, os sedimentos transpassam o promontório e se depositam a sotamar da ponta, realizando o transpasse ou bypass litorâneo. Os dois processos em conjunto, minimizam a erosão que ocorre na área de enseada situada à sotamar de uma determinada ponta litorânea (CLAUDINO- SALES, 2005). Nesse contexto, as dunas tem papel fundamental no equilíbrio morfodinâmico das praias ao distribuir sedimentos ao longo do litoral, notadamente através do mecanismo de transpasse de sedimentos nos promontórios (PINHEIRO, 2013). Os principais problemas ambientais no litoral cearense estão relacionados à ocupação irregular de áreas de preservação como praias, mangues e, principalmente dunas, além de processos erosivos na faixa de praia relacionados a interferências humanas, sobretudo relacionadas à obstrução do trânsito sedimentar marítimo, com a construção de estruturas como portos e de contenção como os espigões. Nesse sentido, somada a esse dinâmico quadro natural, existe em determinados setores na costa do Ceará uma intensa perturbação por parte de elementos antrópicos, que se tornam relevantes para o estudo da zona costeira ao modificarem de forma significativa esse delicado equilíbrio costeiro. A partir da década de 1990 com a construção de um porto marítimo no litoral do Pecém, os processos erosivos foram intensificados já durante a construção desse equipamento, provocando o recuo de aproximadamente 70 m da linha de costa (MORAIS et al, 2002) e vem permanentemente recuando as área de dunas de sua zona costeira, com implantação de infraestrutura e equipamentos do complexo portuário. Considerando os fatores naturais e antrópicos, o objetivo principal desse estudo é apresentar a conceituação teórica e analisar propostas de aplicabilidade do mecanismo de transpasse de dunas e sua relação com a erosão na zona costeira do Estado do Ceará, visando contribuir para o avanço da pesquisa científica sobre dunas em ambiente costeiro tropical e sua pertinência para o controle natural das crescentes taxas erosivas verificadas em diversos seguimentos litorâneos cearenses.

Material e métodos

A perspectiva metodológica para a análise das áreas de dunas de transpasse costeiro do Ceará, leva em consideração a complexidade da problemática do ambiente de dunas no Estado, que integra em seu bojo, aspectos naturais e sociais, fundamentais no entendimento da paisagem. O estudo tomou como referência a análise geoambiental, de inspiração geossistêmica, que conduz ao estudo das relações de interdependência existentes entre os componentes do meio natural e social. Os fundamentos metodológicos da análise geoambiental têm como diretriz principal a análise integrada da paisagem, de forma a permitir uma concepção globalizante e funcional do espaço, através do estudo das inter-relações entre os diversos elementos que a compõem, como indicado por Rodrigues e Silva (2002). Assim, foram realizados amplos levantamentos bibliográfico e cartográfico, seguidos da necessária triagem e análise, considerando a relação e relevância acerca do tema de estudo. As imagens de satélite e fotografia aéreas foram georreferenciadas adotando- se o sistema de projeção UTM, zona 24S, datum SIRGAS 2000. Posteriormente foi feito o processo de vetorização das imagens, a partir da interpretação visual, delimitando cada unidade geoambiental, através de criação de arquivos shapesfiles. Para a confecção dos mapas do período anterior à urbanização foram utilizadas as fotografias aéreas do ano de 1958, disponibilizadas pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca - DNOCS. Essas fotografias representam o período de tempo disponível, com qualidade, de períodos anteriores à ocupação urbana ao longo da faixa costeira cearense. As fotografias aéreas foram digitalizadas, ou seja, transformado do formato analógico para o digital por meio de scanner. As fotografias encontram-se na escala de 1:25.000 e foram georreferenciadas e interpretadas para a vetorização das unidades geoambientais. Para a composição dos mapas no período atual foram utilizadas as Imagens do Satélite QuickBird (2009) trabalhadas em software específico. A etapa de campo consistiu no reconhecimento e identificação das formas dunares de transpasse costeiro no promontório e seu ambiente, além da identificação de obstruções ao trânsito sedimentar ao longo do promontório. Também, determinou-se nessa etapa o estágio atual do processo de uso e ocupação e degradação associada na área do campo de dunas no setor analisado.

Resultado e discussão

Pecém, localizado a 55 km de Fortaleza, é um dos distritos de São Gonçalo do Amarante, ocupando parte do seu litoral leste, mais precisamente no limite com o município de Caucaia (figura 1). Desde a década de 1990, o Pecém integra um dos maiores projetos estruturantes do Estado, um novo porto de cargas e um complexo industrial. A partir daí, o pequeno distrito de pescadores e casas de veraneio passa a ocupar papel de destaque na economia cearense atraindo indústrias e serviços para o seu entorno. No Pecém, as práticas de veraneio também se fizeram presentes, contudo, a partir da construção do porto na década de 1990, a área foi transformada e hoje faz parte do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o CIPP. São Gonçalo do Amarante está localizado a 59,5 km da capital Fortaleza e possui uma população estimada de 46.783 habitantes, numa área de 834,44 km2 (IBGE, 2014). O promontório do Pecém é formado de rochas cristalinas, essencialmente quartzitos e gnaisses, distribuídas principalmente em duas ocorrências contínuas que se iniciam no pós-praia e se estendem em porções isoladas até a profundidade de 20 metros (MAGINI et al., 2013). As dunas móveis migram em direção as dunas fixas ao sul e a faixa de praia à sotamar do promontório, sentido SE-NW. Apresentam-se sob a forma de lençóis de areia, com extensa planície de deflação com presença de dunas cimentadas ou eolianitos. Iniciam sua migração logo após a planície flúvio-marinha do rio Cauípe, à leste da área de estudo. O campo de dunas, associado ao promontório migra em duas direções principais, no sentido do interior da zona costeira, ESE-ENW e realizando o transpasse costeiro, SE-NW, em direção a faixa de praia à sotamar da ponta litorânea. No ano de 1958, início da nossa análise, o campo de dunas móveis prevalecia e o transpasse ocorria ao longo do promontório. Nesse período ainda não estavam estabelecidos o distrito do Pecém nem a área portuária. As dunas migravam sobre a planície em forma de Lençóis de Areia ou dunas compostas em direção à enseada, como mostra a figura 2. Ao longo desses 56 anos, entre 1958 e 2014, houve uma intensa redução da área ocupada pelas dunas móveis, ligadas, principalmente, à construção do porto do Pecém. Na década de 1990 o projeto de instalação do porto na área do Pecém foi colocado em prática e, com isso, as alterações ambientais também foram intensificadas. Mesmo com a implantação de duas unidades de conservação (UC’s) na área, não impediu o avanço das instalações sobre o campo de dunas. A via que liga a região da Lagoa do Cauípe (a leste) ao Pecém intercepta parte dos sedimentos da praia em direção à planície de deflação e ao campo de dunas. Essa Planície de deflação era praticamente inexistente no ano de 1958, com intensa atividade eólica das dunas (rever figura 2), e hoje se estende por cerca de 800 metros ao longo da costa e limita o campo de dunas móveis que se encontra a cerca de 1,0 km da faixa de praia. Atualmente a duna de transpasse não tem influência na alimentação da praia, pois encontra-se quase que totalmente fixada e sem contato direto com o mar, ocorrendo tal fato somente nas altas marés. Essa duna foi separada do restante do campo de dunas pela rodovia que liga o porto a vias estaduais e federais, além das próprias estruturas portuárias construídas que impedem o contato da duna com o restante do campo de dunas (figura 3). A regressão do campo de dunas é visível quando comparado ao período do final da década de 1950. Parte das dunas móveis mais próximas a faixa de praia deram lugar a planície de deflação, que se expandiu e parte migrou sobre as dunas fixas no setor sudeste da área, sendo assim fixadas. A malha urbana da sede do distrito do Pecém avançou sobre as dunas de transpasse contribuindo para a redução e fixação da mesma. Para além, nota-se a expansão das dunas fixas sobre o campo de dunas móveis, diminuindo o aporte de sedimentos e migração de dunas. Em números, as dunas móveis sofreram uma redução de aproximadamente 42% em 56 anos. Quase metade do campo de dunas móveis regrediu, seja em função da diminuição do fluxo de sedimentos em direção as dunas, seja por interferências antrópicas diretas sobre as dunas. Já as dunas fixas apesar do avanço em alguns setores sobre as dunas móveis presenciaram uma relevante diminuição. A redução de cerca de 22% da área de dunas fixas está relacionada especialmente a ocupação humana sobre essas áreas nos setores a sul e sudeste da planície. Além da perda do trânsito de sedimentos para a realização do transpasse costeiro é visível a diminuição da área de dunas no setor. Essa diminuição é comprovada através da diferença entre a área ocupada pelas dunas no ano de 1958 (anterior à ocupação) e hoje (após intervenções antrópicas), como mostra a figura 4. Na área do complexo industrial do Pecém o campo de dunas de transpasse vem progressivamente diminuindo com o bloqueio de sedimentos para a construção de equipamentos portuários e estradas de acesso e já tem pouca influência na alimentação da praia à sotamar. No Pecém, a obstrução do transporte sedimentar, ou seja, a interferência externa no sentido de direção desse transporte leva a diminuição e fixação do corpo dunar ou destruição da dinâmica sedimentar do transpasse costeiro não só pela interferência “in situ”. A resultante para essa ingerência levará a quebra de umas das fontes de alimentação das praias e provável processos erosivos à sotamar das áreas intervencionadas. A pressão sobre o meio ambiente e principalmente a ocupação de áreas costeiras incitou a ação de mecanismos legais, a fim de proteger e organizar a ocupação da zona costeira dentre elas as áreas de dunas que cobrem grandes porções da costa brasileira, incluindo o estado do Ceará (PINHEIRO, 2009). Conforme dito, no Pecém existem duas unidades de conservação, uma de uso sustentável e outra de proteção integral. A de proteção integral refere-se a Estação Ecológica do Pecém, que apresenta área total de 973,09 ha e está localizada entre os municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia. Já a de uso sustentável, a Área de Proteção Ambiental – APA do Pecém foi criada através do Decreto Estadual Nº 24.957, de 05 de junho de 1998. Contudo, a função primordial das unidades de conservação não está sendo cumprida, muito em função da ausência do principal documento de gestão, os planos de manejo, além da possibilidade de intervenções, principalmente estatais dentro da função de utilidade pública do serviço, como é caso das intervenções permitidas na área da praia do Pecém (PINHEIRO, 2015). A unidade de conservação não vem cumprindo seu papel e as dunas continuam a sofrer interferências relacionadas à expansão do porto. O estudo do transpasse costeiro torna possível o entendimento da dinâmica costeira, sobretudo, em setores dominados por promontórios onde a dinâmica é particular. Além disso, esses setores são dominados por processos de erosão/sedimentação, o que requer um maior cuidado ao intervir. Com a continuidade da redução das dunas de transpasse pode-se gerar consequências negativas em áreas que já passam por processos erosivos e iniciar esse processo onde ainda há equilíbrio sedimentar. Nesse sentido, demostra-se a importância da manutenção do trânsito sedimentar dessas áreas de transpasse, pois as mesmas atuam no equilíbrio morfodinâmico das praias à sotavento do promontório. Sua ocupação ou a interrupção da migração pode ocasionar problemas relacionados tanto a erosão dessas faixas de praia como a destruição de importante patrimônio ambiental e paisagístico. Faz-se, portanto, necessário a continuidade de estudos detalhados desses setores alimentadores costeiros da faixa de praia demonstrando a situação atual e provável relação futura com processos erosivos causados por interferência antrópica das dunas de transpasse.

Figura 1

Localização da área estudada.

Figura 2

Fotografia aérea da área estudada em 1958. Fonte: DNOCS-CE.

Figura 3

Área de transpasse costeiro no litoral do Pecém- ce. Duna de transpasse (amarelo), migração (setas laranjas). Fonte: Google Earth.

Figura 4

Mapa espaço-temporal das dunas do litoral do Pecém-CE.

Considerações Finais

As áreas de transpasse costeiro são zonas frágeis do ponto de vista ambiental e de fundamental importância para a manutenção do equilíbrio sedimentar nas faixas de praia. O estudo do transpasse pode indicar as zonas passíveis de erosão de praia futura, e com isso, evitar transtornos físicos e econômicos em áreas de interesse econômico, cultural e turístico que são o litoral do Estado. O estudo de caso de área de transpasse costeiro no litoral cearense mostra como a ocupação das áreas de trânsito de sedimentos pode ocasionar a diminuição ou completa interrupção do transpasse costeiro. Na praia do Pecém o trânsito sedimentar praia-promontório-duna foi interrompido pelas estruturas portuárias e a alimentação da duna de transpasse encontra-se comprometida, assim como a alimentação sedimentar das praias à sotamar do promontório pela via costeira. Entre os anos de 1958 e 2014 o estudo quantificou a redução de 42% do campo de dunas móveis e 22% de dunas fixas associadas, principalmente, a instalação de CIPP na área, além de estar associado também a diminuição do aporte de sedimentos na dinâmica costeira ao longo da costa cearense. Desta forma, propomos que essas áreas sejam mais intensamente estudadas com a realização de mapeamentos atuais e pretéritos, criação de áreas protegidas e acompanhamentos regulares para uma gestão costeira por inteira.

Agradecimentos

A autora agradece à Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP pelo apoio concedido através da bolsa de estudo vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Marinhas Tropicais da UFC.

Referências

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