Autores

Lupinacci, C.M. (UNESP)

Resumo

Em um país cuja linha de costa atinge a extensão aproximada de 8.500 km é essencial a produção de estudos de caráter regional para a compreensão da morfogênese e das condições atuais de sedimentação/erosão das linhas de costa. Contudo, a representação cartográfica dos fenômenos geomorfológicos nesta escala de análise é bastante difícil devido a dimensão e complexidade das formas de relevo em ambientes litorâneos. Assim, o objetivo principal do trabalho é apresentar e discutir mapeamentos geomorfológicos do litoral norte e sul do estado de São Paulo, realizados a partir de duas concepções diferentes (Tricart, 1965; Nunes et al. 1994), na escala de 1:250.000. A partir da análise comparativa dos mapeamentos, foi possível verificar que as características do relevo da área interferem significativamente nos resultados e legibilidade dos documentos cartográficos produzidos.

Palavras chaves

mapas geomorfológicos; litoral; deposição de sedimentos

Introdução

Nos dias atuais, em que a questão ambiental tornou-se premente, constata-se que o planejamento e a gestão dos recursos naturais constituem-se em uma necessidade. Para que o referido planejamento seja possível faz-se necessário um inventário do substrato físico-natural do território a ser gerenciado. Dessa forma, considerando-se que o relevo é um dos elementos que compõem este substrato, o levantamento e a análise das características deste tem relevância para os processos de planejamento e gestão ambiental. Neste contexto, a cartografia das feições de relevo é instrumento importante por possibilitar identificar o contexto espacial em que tais feições se estruturam. Griffits e Abraham (2008) afirmam que os mapas geomorfológicos têm especial importância para os estudos de planejamento ambiental, pois permitem compreender a distribuição espacial dos processos atuais e pretéritos que são responsáveis pelas formas de relevo das paisagens contemporâneas. Assim, a representação cartográfica do relevo pode fornecer dados sobre as condições locais para ocupação ou, ainda, em caso de ocupação já efetiva, pode auxiliar na identificação de áreas potencialmente problemáticas no futuro. Os mapas geomorfológicos constituem-se em produtos diferenciados no âmbito da cartografia temática, não só por abarcarem dados qualitativos e quantitativos, mas também por utilizarem para isso os três modos de implantação (MARTINELLI, 1991) da informação, isto é, utilizam-se os modos linear, pontual e zonal em um mesmo mapa. Assim, representar todas estas informações em um único documento cartográfico constitui-se em uma tarefa difícil de ser executada, levando à diversidade de procedimentos técnicos os quais variam de acordo com as características da área pesquisada, a escala de trabalho e o objetivo do pesquisador. Sobre a área pesquisada, destacam-se ainda as dificuldades geradas pelos ambientes litorâneos. Historicamente, os ambientes litorâneos foram as primeiras áreas ocupadas pelo homem no Brasil e apresentam, nos dias atuais, elevados índices de urbanização. Aliado a este fato considera-se que tais ambientes apresentam elevado grau de suscetibilidade ambiental devido às suas características intrínsecas, tais como propriedades litológicas, hidrológicas, geomorfológicas, climáticas e biogeográficas. Ainda, em um país cuja linha de costa atinge a extensão aproximada de 8.500 km é essencial a produção de estudos de caráter regional (escalas como 1:250.000) para a compreensão da morfogênese e das condições atuais de sedimentação/erosão das linhas de costa. Contudo, a representação cartográfica dos fenômenos geomorfológicos nesta escala de análise é bastante difícil devido a dimensão e complexidade das formas de relevo em ambientes litorâneos, sujeitos a interação terra-mar e a grande diversidade de agentes deposicionais (marinhos – atuais e passados – fluviais, fluvio-marinhos) atuantes nesses ambientes. Assim, tais dificuldades justificam o uso de várias concepções técnicas (Tricart, 1965; Nunes et al. 1994) e a comparação entre estas discutidas nesse artigo, visto que se busca conhecer caminhos técnicos que viabilizem a realização de estudos neste padrão de escala. A área mapeada constitui-se no litoral norte e no litoral sul do estado de São Paulo, setores que apresentam diferenciações geomorfológicas marcantes relacionadas ao posicionamento das escarpas falhadas da Serra do Mar e, dependente deste fato, a extensão e dinâmica das planícies litorâneas. Assim, pretende-se verificar se a representação cartográfica de tais ambientes necessita ser realizada de forma diferente e se os produtos cartográficos gerados atendem as especificidades geomorfológicas destas áreas. O objetivo principal do trabalho é apresentar e discutir mapeamentos geomorfológicos do litoral norte e sul do estado de São Paulo, realizados a partir de duas concepções diferentes (Tricart, 1965; Nunes et al. 1994), na escala de 1:250.000.

Material e métodos

Para a elaboração dos mapas geomorfológicos foi utilizada uma base topográfica, imagens orbitais e dados geológicos. Na técnica de mapeamento proposta por Nunes et al. (1994) o primeiro procedimento realizado foi delimitar a área de estudo em dois setores: cristalino e deposicional. Nesta etapa, as zonas cristalinas foram subdivididas em unidades menores, de acordo com a textura do relevo. O próximo passo foi o cálculo da dimensão interfluvial para cada uma das unidades, através da quantificação da distância entre os cursos d’água presentes nestas unidades. Convém esclarecer que se optou por trabalhar com a medida de dimensão interfluvial e não de densidade de drenagem devido a irregularidade e pequena dimensão das áreas cristalinas no setor sul do litoral paulista. Em seguida, calculou-se o aprofundamento da drenagem com base em cartas topográficas e mapas geológicos usados nas etapas anteriores. Após a obtenção dos valores, estes foram classificados de acordo com sua freqüência, buscando que cada classe fosse representativa espacialmente. Esta classificação resultou em índices numéricos, de caráter hierárquico, que se encontram no interior de cada unidade de dissecação. Já no setor com predomínio de deposição, foram identificados os setores de acumulação marinha que foram divididos em planície (Am) e terraço (Atm) devido à visível diferença de altitude verificada nas imagens. No entanto, os modelados de acumulação fluvial não foram subdivididos em planícies e terraços (Aptf), pois a escala de trabalho não permitiu a visualização da transição entre estes. O próximo procedimento foi a definição das cores para os modelados de acumulação e dissecação. Apesar de Nunes et al.(1994) mencionar a possibilidade do uso de cores, nesta obra o autor não indica quais devem ser usadas. Assim, fez-se o uso de tons a moldes do projeto RADAMBRASIL. O próximo processo foi a inserção dos símbolos. Nas áreas serranas foram utilizadas as simbologias para linha de cumeada e escarpa de falha. Já nas áreas com predominância de acumulação sedimentar, foram usados os símbolos para dunas, cordões litorâneos, borda de terraço marinho e marcas de paleodrenagem. A confecção dos mapas geomorfológicos baseados na técnica de Tricart (1965) também teve início com a divisão da área de estudo em dois setores. Conforme a legenda sugerida por Tricart (1965), as rochas cristalinas devem apresentar coloração laranja e branco, com preenchimento em traços largos e verticais. Para as áreas de deposição são utilizadas as cores sépia (RGB 112, 66, 20) e branco e o preenchimento são linhas verticais mais finas. Além disso, nas formas sedimentares é necessário representar o nível de consolidação dos sedimentos. Quanto mais próximo o traço de cor sépia, mas consolidada é a litologia que compõem o terreno. É indicado por Tricart (1965), em sua legenda, a inserção da natureza dos aluviões. Para o preenchimento das áreas de acumulação fluvial houve adaptações já que não ocorre somente a deposição de argila ou de areia nos aluviões da área estudada, mas dos dois tipos de sedimentos. O procedimento seguinte foi a colocação de simbologias. A escarpa de falha é representada pelo símbolo sugerido pelo autor, assim como as linhas de cumeada. Para o rebordo de terraço marinho foram usados dois símbolos: o de rebordo de terraço suave e o de rebordo de terraço abrupto Os mangues foram representados pelo desenho de uma planta, como proposto por Tricart (1965). As dunas foram representadas pelo símbolo de “dunas desmanteladas”. As falésias rochosas são representadas no mapa final pelo símbolo adaptado de “falésias vivas”. Para demonstrar as superfícies construídas, é utilizado o preenchimento proposto pelo autor, com linhas pretas diagonais em fundo branco. As estradas foram representadas da seguinte maneira: nas áreas cristalinas, inseriu-se o símbolo de estradas construídas com corte na vertente e, nas áreas deposicionais, a simbologia de estradas construídas em aterros.

Resultado e discussão

A principal diferença morfológica entre as áreas do litoral norte e sul do estado de São Paulo (Figura 1, Quadro 1) mapeadas nesta pesquisa refere-se à dimensão e complexidade das áreas de sedimentação recente; fato já amplamente reconhecido pela bibliografia. A comparação entre os mapas produzidos pelas técnicas apontadas por Nunes et al. (1994) e Tricart (1965) representam nitidamente essa diferença. Para o litoral sul, o uso das cores e letras, como realizado no mapa que se utiliza da proposta de Nunes et al. (1994, figura 2), permite uma identificação rápida dos diferentes tipos de terrenos gerados por diversos processos deposicionais, o que caracteriza a geomorfologia deste setor. Já o litoral norte, é dominado pelas litologias de origem cristalina e o mapeamento produzido pela técnica de Tricart (1965) destaca esse aspecto do terreno (Figura 3). Contudo, mesmo neste setor, o mapa produzido pela proposta de Nunes et al. (1994) apresenta um nível maior de informação ao incorporar os dados morfométricos. Na proposta de Tricart (1965) os dados morfométricos poderiam constar através da presença das curvas de nível, contudo, em áreas de alto declive, como no litoral norte, estas comprometem a legibilidade. Além disso, a interpretação do significado destas, como proposto por Nunes et al. (1994, Figura 3) através dos índices de dissecação, fornece um nível maior de informação para a análise dos terrenos. Convém lembrar, contudo, que esse tipo de análise morfométrica também implica em maior demanda de tempo para sua realização. Assim, no litoral norte avaliou-se a morfometria do terreno para mais de duas centenas de unidades e no litoral sul para mais de uma centena de unidades. Na escala de 1:250.000 verifica-se que a identificação dos setores de acumulação marinha atual (Am) é bastante comprometida tanto no litoral sul, quanto no litoral norte, nas diversas propostas analisadas. No litoral norte essa dificuldade é ainda maior, principalmente devido a menor dimensão de tais terrenos e a pouca representação longitudinal destes que são frequentemente interrompidos pelos esporões serranos que atingem o mar. Já as áreas de sedimentação marinha antiga, compostas pelas acumulações de terraço marinho (Atm) são representadas de forma significativa devido as suas dimensões espaciais. Nos mapeamentos do litoral norte, o uso de cores, como proposto por Nunes et al. (1994, Figura 3), é essencial para a identificação de tais terraços. Já no litoral sul, o uso de tracejados, como proposto por Tricart (1965) também produziu bom resultado já que a dimensão dos terraços marinhos é muito significativa. Contudo, essa mesma proposta para o litoral norte não apresentou os mesmos bons resultados visto que, nesta área, geralmente estes terraços estão recobertos por espaços urbanos e, na proposta do último autor citado, esses devem ser representados por traços diagonais pretos sobre fundo branco. Assim, no mapa do litoral norte que utiliza a proposta de Tricart (1965,) os terraços marinhos foram representados em poucas áreas, com destaque para Bertioga e leste de Picinguaba, locais onde a urbanização ainda não se estabeleceu sobre estes terrenos. Considera-se, portanto, que o modelado de origem antrópica também deve ser considerado quando se decide por um sistema de representação cartográfica do relevo. Ainda, sobre os terraços marinhos, verificou-se que, tanto no litoral norte como no sul, sobre estes se localizavam diversas feições geomorfológicas ligadas à dinâmica marinha (como os cordões litorâneos) e a dinâmica eólica (como os campos de dunas). A representação destas feições nos mapeamentos propostos por Nunes et al. (1994) e Tricart (1965) fica comprometida devido o uso de cores e traços de fundo, respectivamente. Assim, faz necessário adaptar as propostas aqui analisadas ou buscar outras que viabilizem tal representação. Assim, no litoral sul, considera-se que os mapeamentos realizados não disponibilizam informações valiosas visto que esta área está sujeita a uma intensa dinâmica deposicional e erosiva, como apontado por Henrique e Mendes (2001), e, neste caso, a distribuição espacial dos cordões litorâneos e dos campos de dunas é essencial para a análise da estabilidade dos terrenos, principalmente em escalas de maior detalhe. Com relação às áreas de acumulação fluvial, o uso de cores, como proposto por Nunes et al. (1994), facilita a identificação dessas. Contudo, a proposta de Tricart (1965) para estas áreas é interessante por sugerir a representação da natureza dos aluviões através de tramas sobre os traços verticais que identificam as áreas de acumulação fluvial. No setor norte do litoral sul, esse tipo de representação propicia a identificação eficiente das áreas de acumulação fluvial, que tem relativa expressão areal e estão entremeadas aos terraços marinhos. Já no litoral norte, as áreas dominadas pela dinâmica fluvial são pouco representativas, destacando-se somente alguns setores próximos a Bertioga, e, portanto tal aspecto não se registra. Símbolos sobrepostos também são sugeridos por Tricart (1965) para as áreas de acumulação fluvio-marinha através de figuras que buscam representar o enraizamento pneumatóforo dos manguezais sobre os tracejados referentes a esse tipo de terreno. Verifica-se que, tanto no litoral norte como sul, quando os terrenos de origem fluvio-marinha são de pequena dimensão, a representação de tais figuras compromete a legibilidade do mapeamento geomorfológico.

Figura 1

Localização das áreas mapeadas.

Figura 2

Trechos dos mapeamentos do litoral sul que utilizam, respectivamente, a proposta de Nunes et al. (1994) e Tricart (1965). A legenda encontra-se no quadro 1.

Figura 3

Trechos dos mapeamentos do litoral norte que utilizam, respectivamente, a proposta de Nunes et al. (1994) e Tricart (1965), mantida a escala de 1:250.000. A legenda encontra-se no quadro 1.

Quadro 1

- Simbologias utilizadas nos mapeamentos geomorfológicos do litoral norte e sul de São Paulo.

Considerações Finais

Sintetizando, pode-se afirmar que os objetivos da pesquisa e as características dos terrenos a serem mapeados devem ser considerados em conjunto quando da escolha do sistema de representação cartográfica do relevo em áreas litorâneas. Assim, a experiência com os mapeamentos realizados nesta pesquisa permitem considerar que: 1. Se o objetivo do mapeamento refere-se à identificação da estabilidade dos terrenos e estes apresentam grande área ocupada por modelados de dissecação, a proposta de Nunes et al. (1994) deve ser considerada, pois, ao orientar a avaliação da morfometria das fáceis de dissecação, possibilita obter um nível de informação muito superior as demais propostas. 2. Se as feições lineares, representadas por símbolos (como dunas e cordões litorâneos, neste estudo), são importantes instrumentos para a análise pretendida, devem-se adaptar as técnicas testadas ou buscar outras propostas que utilizem pouco preenchimento dos polígonos, possibilitando assim representar mais nitidamente tais feições. 3. Se as áreas de acumulação são de significativa dimensão, a proposta de Tricart (1965), que se utiliza de traços cujo espaçamento representa a consolidação das litologias, deve ser testada visto que esse tipo de informação é útil para a avaliação da estabilidade dos terrenos.

Agradecimentos

Referências

GRIFFITHS, J. S.; ABRAHAM, J. K. Fators affecting the use of applied geomorphology maps to communicate with differente end-user. Journal of maps, 2008, p. 201-210.
HENRIQUE, W.; MENDES, I. A. Zoneamento Ambiental em Áreas Costeiras: uma Abordagem Geomorfológica. In GERARDI, L. H. O.; MENDES, I. A. (orgs). Teoria, Técnicas, Espaços e Atividades: Temas de Geografia Contemporânea. Rio Claro: Programa de Pós-Graduação em Geografia UNESP/Associação de Geografia Teorética - AGETEO, 2001. Parte II Espaços e Atividades. p. 199-222. Disponível em: <http://www.ageteo.org.br/download/livros/2001/09_Henrique.pdf>.
MARTINELLI, M. Curso de cartografia temática. São Paulo: Contexto, 1991.
NUNES, B. A. et al. Manual Técnico de Geomorfologia. Rio de Janeiro: IBGE, 1994. Série Manuais Técnicos em Geociências, n.5. 113p.
TRICART, J. Principes et Méthodes de la Géomorphologie. Paris: Masson et Cie, 1965. 496p.