Autores

Gomes da Silva, D. (UFPE) ; de Barros Corrêa, A.C. (UFPE) ; de Freitas Amorim, R. (UFRN)

Resumo

Diferentes tentativas de reconstruções paleoambientais vêm sendo usadas na interpretação do Quaternário tardio no Nordeste do Brasil. Desta forma, os calcretes têm sido usados como indicadores paleoambientais em sucessões aluviais, especialmente para a compreensão das flutuações na zona vadosa e freática. Para a realização deste estudo, quatro áreas com ocorrência de calcretes foram amostradas nos Estados de Pernambuco e Piauí. As amostras foram analisadas com a utilização de um espectrômetro de massa de fonte gasosa, modelo DeltaPlus Advantage (Thermo Finningan). A presença de calcrete em Pernambuco e Piauí atesta um período de aridez severa que perdurou no Nordeste do Brasil desde o UMG até o Holoceno inferior, com paleotemperaturas rebaixadas em 6°C, conforme já atestado para os depósitos do Gráben do Cariatá (PB).

Palavras chaves

Calcrete; Semiárido; Nordeste do Brasil

Introdução

A geomorfologia nas últimas décadas tem experimentado grandes avanços na compreensão da evolução da paisagem em regiões tropicais a partir da interação entre processos de diferentes taxas atuantes em diversas escalas, sendo estes processos variáveis e descontínuos no espaço e no tempo. Sendo assim, as relações de conectividade espaço-temporais são extremamente variadas e controladas pela estrutura (herdada ou funcional), e taxas de operação dos processos superficiais (pedogênese e morfogênese), devendo estas serem compreendidas a fim de se estabelecer, através de modelos de evolução da paisagem, a relação complexa que ocorre entre as áreas fontes de sedimentos, as armazenadoras e o transporte de sedimento, levando-se em consideração as variações climáticas e suas implicações na formação do relevo. Diferentes tentativas de reconstruções paleoambientais vêm sendo usadas na interpretação do Quaternário tardio no Nordeste do Brasil. Para estudos paleoecológicos a questão do tempo assume um papel crucial na análise tendo em vista que os processos contemporâneos não são os mesmos que produziram os depósitos reliquiais. Desta forma, os calcretes têm sido usados como indicadores paleoambientais em sucessões aluviais, especialmente para a compreensão das flutuações na zona vadosa e freática (SINHA et al. 2006). Calcrete é um acúmulo secundário de carbonato de cálcio (CaCO3) derivado de intemperismo químico, que se concentra em intervalos estratigráficos, permeando e cimentando fragmentos residuais em regiões áridas e semiáridas (ALONSO-ZARZA et al. 2003, ALONSO-ZARZA et al. 2006, TABOR et al. 2006). A dissolução do CaCO3 depende de fatores físico-químicos como pressão de CO2(g), temperatura e pH. A combinação destes fatores determina um sistema capaz de dissolver o CaCO3 em rochas carbonáticas pré- existentes, fazendo com que os íons resultantes sejam transportados até locais onde o estado de equilíbrio obtido na dissolução seja perturbado. A fim de decifrar as possíveis mudanças climáticas e vegetacionais no semiárido pernambucano, os calcretes foram usados como um Proxy da relação entre precipitação e evapotranspiração do momento de sua formação, que foi reconstituída a partir de estudos isotópicos de δ18O e δ13C.

Material e métodos

Para a realização deste estudo, quatro áreas com ocorrência de calcretes foram amostradas nos Estados de Pernambuco e Piauí. A primeira área localiza-se no distrito de Fazenda Nova, município de Brejo da Madre de Deus, a 200 km da cidade do Recife. Inserido dentro dos domínios da bacia hidrográfica do Rio Capibaribe, o corpo granítico da área é integrante do Batólito Caruaru-Arcoverde, o maior corpo da associação cálcio-alcalina de alto potássio da Província Borborema. A segunda área Localiza-se no município de Salgueiro, inserido dentro da mesorregião do sertão de Pernambuco, a 550Km a oeste da cidade do Recife. A região apresenta morfologia marcada por inselbergs e maciços antigos com encostas bastante acentuada, além de vários afloramentos de rochas. A terceira área localiza- se no município de Afrânio, inserida na unidade geoambiental da Depressão Sertaneja, na Mesorregião do São Francisco e Microrregião de Petrolina. A área encontra-se no extremo oeste do Estado, a 550 m de altitude, distando cerca de 790 km do Recife. Por fim, a quarta área localiza-se no município de São Raimundo Nonato, sudeste do estado do Piauí, localizada entre dois domínios geológicos: a Província Estrutural da Borborema, representada pela Faixa de Dobramentos Riacho do Pontal, e a Bacia do Parnaíba. As amostras de calcretes foram analisadas no Laboratório de Isótopos Estáveis, Instituto de Geociências da Universidade de Brasília, com a utilização de um espectrômetro de massa de fonte gasosa, modelo DeltaPlus Advantage (Thermo Finningan). O princípio básico dos procedimentos analíticos para a obtenção das razões dos isótopos de O e C consiste na extração do dióxido de carbono (CO2) contido na CaCO3 a partir da hidrólise ácida com H3PO4. A medição dos isótopos de C e O é realizada a partir do espectro de massas das moléculas de CO2. A reação para produção de CO2 é iniciada logo após gotejamento de ácido fosfórico (H3PO4) sobre amostras de CaCO3, num reator sob temperatura controlada a 72°C. Após essa reação química, o dióxido de carbono é arrastado dos vials através de um fluxo de Hélio para o acessório tipo Finnigan Gas Bench, de onde é separado do vapor d'água dentre outros gases, por um sistema de cromatrografia gasosa, num sistema com operação automatizada. Um sistema composto por triplo coletor de O/C realiza a determinação das razões isotópicas do CO2 já no espectrômetro, através de uma fonte iônica. Os resultados analíticos são baseados na análise de dez alíquotas sequenciais de cada amostra. A precisão analítica é melhor que ± 0.08‰ para os valores das razões isotópicas de 13C/12C e ± 0.1‰ para valores de 18O/16O para as amostras contendo, no mínimo, 100µg de carbonato de cálcio. As razões isotópicas são expressas através do termo delta (δ) e os valores obtidos são reportados em ‰ relativos ao padrão VPDB (Vienna Pee Dee Belemnite), sendo este definido internacionalmente. Os valores de δ18O e δ13C foram definidos, respectivamente, segundo as equações: δ18O (‰) = [(18O/16Oamostra /18O/16Opadrão) -1] x 1000 δ13C (‰) = [(13C/12Camostra /13C/12Cpadrão) -1] x 1000 As interpretações paleoclimáticas foram baseadas nos valores de anomalias dos dados 18O, que teve como finalidade definir com maior clareza alguns eventos paleoclimáticos em escala regional. Após remoção da tendência gerada por diferenças nos valores absolutos de δ18O, o valor da temperatura da calcita pedogenética formada em equilíbrio com água meteórica foi adquirida a partir da equação, com base em Tambor et al. (2006): T(±2°C)= (δ18Occ(PDB) - 12.78)/0.64 O padrão para isótopo de oxigênio em carbonatos é o Vienna Pee Dee Belemnite (VPDB) ou simplesmente PDB, para a água do mar o padrão é o Vienna Standard- Mean-Ocean-Water (VSMOW) ou simplesmente SMOW.

Resultado e discussão

Estudos realizados por Silva (2007), Alves (2007) e Silva (2009) para os calcretes de Fazenda Nova e Afrânio motivaram a adição de datação por 14C e cálculo da paleotemperatura a partir da razão do 18O, com a finalidade de se compreender em quais condições ambientais tais depósitos foram formados. Contudo, durante a realização da pesquisa, novos registros de ocorrência de calcretes em ambiente semiárido nordestino foram incorporados ao trabalho, tendo em vista a sua importância para o entendimento das mudanças climáticas ocorridas durante o Quaternário na região (Figura 01). A primeira área de ocorrência de calcrete situa-se na marmita de dissolução da localidade Incó, no distrito de Fazenda Nova (PE). O depósito é um conglomerado suportado por clastos e bioclastos (ossos de megafauna) com cimentação carbonática formando um nível endurecido. Filamentos de carbonato de cálcio se estendem pela camada sobreposta ao conglomerado, formando um paleossolo inumado com antigo horizonte B cálcico truncado pela deposição sedimentar subsequente. A segunda área de ocorrência de calcrete situa-se na Lagoa do Uri, município de Salgueiro (PE). O calcrete da lagoa encontra-se parcialmente cimentando uma camada de ossos de megafauna, apresentando-se de forma maciça no topo dos bioclastos, com transição filamentosa para a camada de sedimentos minerogênicos sobrepostos. A lagoa intermitente funciona como uma cabeceira de drenagem de primeira órdem, de origem litológica e estrutural, em uma zona de contato entre metassedimentos (mica-xisto) e granitos, ambos bastante fraturados. A terceira área de ocorrência de calcrete encontra-se em uma lagoa intermitente no povoado Caboclo, município de Afrânio (PE). O calcrete apresenta-se como um conglomerado de matriz arenosa, cimentado por carbonato de cálcio na superfície da lagoa. A parte grossa do conglomerado é formada principalmente por bioclastos fragmentados (ossos de megafauna) e moderadamente empacotados, sem orientação preferencial (SILVA 2009). A quarta área de ocorrência de calcrete encontra-se na vertente sul do Morro do Garrincho, às margens da BR-020, no município de São Raimundo Nonato (PI). O calcrete ocorre cimentando uma camada basal de conglomerado, que aflora na baixa encosta de um pequeno inselberg estruturado em calcário metamórfico, em forma de crista. O nível de conglomerado é sotoposto a um colúvio vermelho, areno argiloso, sem concreções calcinomorfos (Figura 02). A composição isotópica do δ18O do carbonato de cálcio representa a quantidade de 18O existente na água em equilíbrio constante com a temperatura no momento da precipitação deste carbonato. Sendo assim, os calcretes coletados em Fazenda Nova, Afrânio e Garrincho apresentaram os maiores valores δ18O, variando de -0,92‰ a -4,69‰ (Tabela 01). As águas meteóricas são empobrecidas em 18O pelos sucessivos ciclos de evaporação e condensação. Como as rochas carbonáticas não marinhas são variavelmente empobrecidas em 18O, os seus valores são normalmente negativos na escala PDB por influência das águas meteóricas (FAURE 1991). No entanto, os maiores valores de δ18O apresentados nas amostras analisadas indicam que a precipitação de carbonato nessas unidades ocorreu com a regressão da área de inundação sob condições áridas, com fluxo de água subterrânea rebaixada e redução do tempo de residência da água em áreas alagadiças devido à evaporação e a troca de CO2 atmosférico, resultando no aumento nos valores de δ18O. O valor relativamente baixo de δ18O do calcrete do Uri, -0,09‰, indica que houve um fornecimento de água doce durante a precipitação do carbonato. O aumento da carga hídrica na área imersa aumenta a vazão de água doce na área de inundação, resultando na diminuição dos valores δ18O devido à influência de água meteórica e a troca de redução de CO2 atmosférico, respectivamente (CUNHA 2011). A partir das medidas isotópicas de δ18O, as paleotemperaturas calculadas para Fazenda Nova e Afrânio foram de 18,7°C e 18,4°C. Tais resultados são compatíveis com dados encontrados por Mutzemberg et al. (2013) para a lagoa do Uri em Salgueiro, cuja paleotemperatura foi de 19,8°C. Sendo assim, apresentando um rebaixamento em torno de 6ºC para as áreas, os resultados confirmam a hipótese que os calcretes foram formados sob regime climático de semiaridez severa porém de temperatura mais rebaixada em relação ao presente. Com paleotemperatura de 27,2°C e após análise petrográfica do depósito, o calcrete do Garrincho, apresentando minerais de carbonato do tipo fibroso, não é recomendado para reconstrução de paleotemperatura por possuir maior área de superfície por unidade de volume, e assim, mais suscetível a eventos de recristalização (DWORKIN et al. 2005). Estudos realizados por Stute et al. (1995) em aquífero confinado da Bacia do Parnaíba - PI constataram que o baixo valor de δ18O estava associado a um rebaixamento da temperatura em torno de 5,4°C durante o Último Máximo Glacial. Partindo-se dessa premissa, pode-se concluir que o calcrete do Garrincho foi formado a uma paleotemperatura de aproximadamente 19ºC. Datações por 14C para os calcretes de Afrânio e Garrincho apresentaram idades de 17,19 e 16,43 Ka. Estas idades são semelhantes à encontrada por Alves (2007) para o calcrete de Fazenda Nova, em 19,4 Ka; sugerindo uma estabilização da paisagem, a nível regional, com períodos de não-deposição, onde os depósitos ficaram expostos durante um período de tempo suficientemente longo para a formação do peleossolo (calcrete) sob regime de aridez severa durante o UMG. A idade de 9,91 Ka para o calcrete da lagoa do Uri apresentado por Mutzemberg et al. (2013) sugere que o clima de aridez severa na região perdurou até o Holoceno inferior, com temperaturas rebaixadas em até 6°C, mesmo na transição pleistoceno/holoceno. Condições mesológicas de maior rebaixamento da temperatura no semiárido baiano também foram encontradas para este período por Barreto (1996), a partir da análise da assembleia palínica em turfeiras interdunares no limiar P/H.

Figura 01

Localização das áreas estudadas com ocorrência de calcretes no NE.

Figura 02

A) Marmita em Fazenda Nova; B) Lagoa em Afrânio; C) Lagoa em Salgueiro; D) Calcrete em São Raimundo Nonato (PI)

Tabela 01

Valores de isótopos, paleotemperatura e idades dos calcretes.

Considerações Finais

A ocorrência de níveis com carbonatos, num contexto deposicional predominantemente terrígeno, vem se mostrando como relevante registro na compreensão da evolução da paisagem em estudos paleoclimáticos. Por serem importantes sistemas deposicionais em ambientes semiáridos, os calcretes podem ser relacionados com eventos de longa sedimentação química, de extensão variável, correspondendo a pausas na sedimentação terrígena e neoformação de carbonatos sob condições climáticas diferentes do atual. A presença de calcrete em Pernambuco e Piauí atesta um período de aridez severa que perdurou no Nordeste do Brasil desde o UMG até o Holoceno inferior, com paleotemperaturas rebaixadas em 6°C, conforme já atestado por Bezerra (2008) para os depósitos do Gráben do Cariatá (PB). A interpretação da dinâmica geomorfológica através do registro sedimentar encontrado nas lagoas e marmitas de dissolução forneceram bases para a elucidação de interações entre as mudanças temporais de longo e curto prazo nos processos geomorfológicos no Quaternário tardio na região, cujas repercussões ainda são visíveis na paisagem. Entretanto, a principal dificuldade dessa proposta incide na natureza intrínseca do material, pois os depósitos na forma que se encontram na paisagem, representam apenas uma pequena parcela dos materiais originais que conseguiram permanecer incólumes às perturbações decorrentes das mudanças ambientais da ordem de centenas a milhares de anos.

Agradecimentos

Referências

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