Autores

Veneziani, Y. (USP) ; Rodrigues, C. (USP)

Resumo

As persistentes inundações na Região Metropolitana de São Paulo sugerem que as políticas e ações de mitigação e controle sejam insuficientes, seja por limitações dos modelos hidrológicos de previsão, seja por incompreensão da totalidade das mudanças ocorridas na superfície. Analisamos a variabilidade espaço-temporal das inundações por duas metodologias: aplicando simulações hidrológicas e por meio de cartografia de suscetibilidade à inundação pela Geomorfológica Antropogênica, ambas aplicadas na bacia do córrego Três Pontes (≈10km²) para usos da terra em 1962 e 2011, tendo sido, seus resultados, comparados. Entre os cenários houve aumento na ordem de 2,25 do pico de vazão, expansão de área inundada de 15% e aumento de 1,5m da altura da inundação. A comparação dos produtos cartográficos das metodologias apontou para resultados similares espacialmente, indicando possíveis complementariedades metodológicas, contribuindo para aproximar conhecimentos da geomorfologia e hidrologia urbana.

Palavras chaves

Geomorfologia Antropogênica; Modelagem hidrológica; Região Metropolitana de São Paulo

Introdução

As inundações urbanas constituem as calamidades públicas mais frequentemente enfrentadas no Brasil, principalmente nas regiões metropolitanas, como a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP-São Paulo). A compreensão de tais fenômenos envolve, por um lado, o conhecimento dos elementos físicos da bacia, tais como, o regime pluviométrico e fluviométrico, relevo, aspectos de tectônica e litologia, e, por outro, os elementos introduzidos pelo processo histórico de ocupação do solo [1]. Associado ao transporte e deposição de sedimentos, os processos naturais de inundações são, entre outros, os responsáveis pela formação de planícies fluviais [2]. Como explicado por Ward [3], sua ocorrência está relacionada com a magnitude e frequência de eventos pluviométricos, de tal forma que, as formas da planície fluvial fornecem indicadores espaciais e, temporais, bem como, de susceptibilidade ao transbordamento. Assim, o conhecimento da dinâmica natural é essencial para o estudo espaço- temporal de inundações, mas a ocupação urbana torna território descontínuo e irregular em relação à sua susceptibilidade [4,5], de modo que o fator antrópico é igualmente indispensável em tais estudos. Na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) muitos problemas ambientais têm sido associados com o aumento da população desacompanhado de infraestruturas urbana e sanitária necessárias. No que diz respeito à drenagem urbana, tem- se observado eventos de inundação progressivamente mais crítico e catastróficos, nas planícies fluviais dos rios maiores que drenam a capital do Estado, bem como nos afluentes menor ordem, como o córrego Três Pontes. O cenário crítico do escoamento urbano na RMSP pode ser resumido em três causas principais: (i) a persistência na realização de intervenções estruturais orientadas exclusivamente por uma perspectiva sanitária, (ii) a porcentagem cada vez maior de áreas impermeáveis e de aterros, principalmente nas planície fluviais, e (iii) ações restritas de combate a cheias e políticas de macrodrenagem insatisfatórias [6]. O reconhecimento da persistência de tal problema, mesmo após diversas e ostensivas intervenções, aponta para a alta complexidade dos fatores espaciais e temporais envolvidos no seu entendimento, bem como, a existência de limitações nas modelagens de fluxos de inundações urbanas. Este estudo é dedicado à análise de abordagens e técnicas que oferecem suporte para decisões de planejamento, com base na aplicação e análise comparativa dos resultados obtidos a partir de duas metodologias distintas, uma das quais pertencentes ao campo da geomorfologia e outra, referente à área de hidrologia. Estes foram aplicados em separados, mas comparados tendo em vista possíveis complementariedade metodológicas e técnicas desses procedimentos no contexto das mudanças antrópicas no espaço urbano. Neste contexto, o principal objetivo desta pesquisa foi analisar comparativamente as abordagens metodológicas derivadas de geomorfologia antropogênica e hidrologia, buscando realizar proposições integradoras entre estes dois campos.

Material e métodos

Afluente do rio Tietê na margem esquerda, o córrego Três Pontes é o limite entre os municípios de São Paulo, Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e Poá, e sua bacia hidrográfica perfaz uma área de 9 km². a. Geomorfologia Antropogênica A geomorfologia antropogênica utiliza as técnicas de mapeamento geomorfológico retrospectivo para derivar unidades morfológicas complexas, as quais, neste estudo, foram utilizadas para identificar setores de graus variados de vulnerabilidade à inundação, de modo que nos baseamos nas tendências geomorfológicas espaciais de escoamento e inundações [7,8], apoiados por Nir [9], Cooke Doornkamp [10], Szabó, David e Lóczy [11], e Goudie [1]. As morfologias originais (MO) foram mapeadas considerando o cenário de 1962, por interpretação analógica das fotos aéreas, tendo sido elegida a seguinte legenda: planície fluvial, terraços e backswamp (para morfologias fluviais), e feições elementares do relevo [6] (para o sistema interfluvial). Utilizamos, como apoio, a planialtimetria 1:10.000 da Emplasa. As morfologias antropogênicas (MA) foram derivadas do uso da terra, tendo sido sistematizadas modificações potenciais no sistema geomorfológico e, especificamente, sobre processos hidrológicos. O uso da terra foi obtido por classificação visual de imagens World View II (2011), e a legenda abrangeu elementos não-urbanos (estrada, solo exposto, mineração) e urbanos, dentre os quais, as favelas (estágios intermediário de urbanização), e de urbanização consolidada. Para MA de canal, consideramos canais retificados (em terra e em concreto) e canais tubulados. A combinação entre MO e MA deriva unidades morfológicas complexas (UC) que reúnem características inerentes ao seu estado original e a sequência de intervenções no sistema físico. Cada combinação pode ser interpretada como uma unidade de perturbação dos fluxos e materiais, sendo que, neste estudo, dividimos as UCs em domínio do sistema fluvial e do interfluvial, focando- nos, respectivamente, na análise da redução da capacidade de estocagem de excedentes, e no aumento do runoff. Para o sistema fluvial e interfluvial derivamos 11 e 15 UCs, respectivamente. A análise espacial das UCs associada a critérios geomorfológicos e hidrológicos permitiram derivar unidades de hiperconcentração de fluxos nos sistemas interfluvial e unidades gravemente comprometidos hidromorfologicamente no sistema fluvial, tendo sido classificados nos seguintes níveis de suscetibilidade à inundação: muito baixa, baixa, média, alta e muito alta. 2.1 Modelagem hidráulica Baseamo-nos em modelagem chuva-vazão (unitária hidrograma-SCS, software ABC6) e simulação hidráulica de regime permanente no HEC-RAS [12, 13], também para 1962 e 2011. As simulações produziram vazões de pico teóricas com Tempos de Retorno (TR) [6] conhecidos e, a partir delas, manchas de inundação. A obtenção das vazões de pico teóricas ocorreu para onze subunidades hidrográficas da bacia estudada, com área média de 0.8km², visando detalhar os picos ao longo do perfil longitudinal do canal. Utilizamos os TRs de 2, 5, 10, 15, 20, 25, 50, 100 e 200 anos, e tempo de duração 300 min, tempo de pico da bacia. Os valores de CN (SCS) foram obtidos dos mapas de uso da terra para 1962 e 2011. Os demais dados necessários à modelagem foram retirados do mapa topográfico da Emplasa. A modelação do fluxo permanente foi realizada no HEC-RAS. Utilizamos duas seções típicas para as simulações nos períodos de 1962 (seção natural) e 2011 (seção projetada), extrapoladas do terço de jusante para todo trecho simulado, com o apoio do software HEC-GeoRAS e de MDT. Os valores de o n de Manning para o canal e planície foram baseados nos pavimentos existentes: 0,02 (condição média para o rio), e 0,025 (pavimento urbano), 0,051 (solo descoberto) e 0,073 (grama) para a planície. A condições de contorno a montante foi inclinação crítica e a jusante a curva-chave estimada (Chézy- Manning). Com a ferramenta GIS\RAS Mapper obtivemos a variação espacial do n

Resultado e discussão

a. Resultados Os mapas da Figura 1 são apresentados como principais resultados cartográficos da abordagem geomorfolófica antropogênica. As áreas de maior potencial de inundações concentram-se nas confluências fluviais, a montante dos canais tubulados e pontes, nas regiões de urbanização em estágio intermediário e no entorno de setores de terraplenagem ou alteados. Os gráficos da Figura 2 indicam a variação de descarga durante uma inundação construído a partir de chuvas de concepção, na qual observamos o tempo de pico de fluxo de cerca de 4 horas após o início do evento, e o aumento significativo entre 1962 e 2011, considerando, principalmente, mais curtas descargas recorrência Tempo. A Tabela 1 apresenta as áreas inundadas (km² e % da bacia), as altitudes atingidas por descargas de pico na foz, e a comparação entre os resultados de ambos os cenários. Os resultados da comparação por sobreposição entre a mancha de inundação simulada em 2011, produzida por vazões de pico de diferentes TRs, e as unidades de suscetibilidade à inundação, derivadas pela abordagem geomorfológica antropogênica são apresentados na Tabela 2. Os níveis "alta" e "muito alta" suscetibilidades das unidades potenciais de inundação apresentaram maiores percentuais de sobreposição sobre as inundações simuladas, variando de 95,22 a 97,08% para o primeiro, e 82,88 a 86,65% para a segundo. As unidades de "muito baixa" suscetibilidade à inundação, embora menos relevantes em termos de área nominal, sua sobreposição às manchas de inundação simuladas variaram significativamente mais, considerando os limites relativos a diferentes Tempos de Retorno, de 59,42 para 74,32%. b. Discussões Do ponto de vista dos processos hidrológicos superficiais, as morfologias originais apontaram para as potencialidades naturais de escoamento e inundações na bacia, que combinados com as morfologias Antrópicas derivaram unidades complexas (ou unidades de perturbação), reinterpretadas a partir de como eles sugerem mudanças na tendência dos fluxos superficiais, amplificando ou reduzindo o potencial de inundações. Há um aumento na suscetibilidade à inundação nos setores à montante de canalizações, de pontes e obras de alteamento; em contraponto, setores adjacentes aos canais retificados ou tubulados, e as áreas aterradas tendem a ter uma diminuição no tamanho potencial de inundação. As áreas backswamp constituem frações territoriais com o maior potencial de inundações e, quando combinado com morfologias antropogênicas, com altos níveis de perturbação, tais como áreas de fase intermediária urbano, constituem áreas de elevada suscetibilidade aos processos severos de inundação, freqüentes e de longa duração. A concentração de fluxos pluviais resultantes da orientação de ruas urbanas e pela velocidade dos fluxos rasos de acordo com a inclinação, também foi considerado na análise espacial. Os hidrogramas apresentados na Figura 2 derivaram da aplicação da metodologia do Unitária Hidrograma-SCS para as mesmas situações utilizadas para o mapeamento de morfologias originais e antropogênicas, de forma que os valores de CN que respondem ao aumento do excesso pluviométrico, são equivalentes as ocupações relacionadas com as morfologias mapeadas. Entre 1962 e 2011, observou-se um aumento de 80 a 140 m³/s de descargas de pico para os intervalos de recorrência de 100 e 200 anos, o que representa uma variação de 1,90, aproximadamente. As taxas de variação contidas na figura 2 apontam tendência de aumento de acordo com o menor intervalo de recorrência, alcançando a máxima variação de 4,40 para TR 2 anos, o que demonstra a implicação relevante de mudanças na condição de infiltração de superfície para eventos mais frequentes. Apesar de diversas obras hidráulicas, o aumento das descargas de pico entre 1962 e 2011 tem um impacto significativo no aumento das áreas inundadas entre os cenários (Tabela 2), apontando para a tendência similar a observada na variação das descargas e, portanto, decorrendo no aumento mais relevante da área inundada, bem como, o aumento de Z na foz, em TRs mais frequentes. Considerando o tempo de recorrência de 2 anos, a sobreposição de inundação simulada em 2011 demonstrou que há compatibilidade entre seu resultado e os limites das unidades de suscetibilidade à inundação geradas pela geomorfologia antropogênica, com maior percentual de cobertura relacionadas com "Muito alta" e "Alta" suscetibilidade, compostas por backswamps, setores de meandros e várzeas sedimentadas, sobreposta por favelas ou urbanização sob arranjo espacial crítico consolidados. O aumento de sobreposição de acordo com o aumento do TR é observado em todas as unidades de suscetibilidade. No entanto, a variabilidade de 15%, aproximadamente, para as unidades de "muito baixa" suscetibilidade deve ser particularizada, porque corresponde ao aumento gradual da simulação de inundações em diferentes TRs no setor de jusante da bacia, onde os limites simulados apresentam as variações mais importantes. Neste caso, esta variação foi observada em um amplo setor de terraço fluvial com o contato suave com a planície de inundação, o que implica, provavelmente, sobreposição gradual das inundações simuladas. Isso exemplifica um dos tópicos de limitações sobre a interpretação que ambas as metodologias proporcionam: por um lado, a geomorfologia antropogênica, onde as incertezas espaciais estão relacionadas a avaliações exclusivamente conceituais e pressupostos teóricos, ainda mais relevantes quando se tratam de se realizar previsões temporais. Por outro lado, as incertezas da modelação hidráulica estão ligadas ao número de variáveis, que, em geral, são estimadas e calibradas para outras circunstâncias ambientais, e devido à dependência de informações topográficas detalhadas para produzir manchas de inundação mais precisas.

Figura 1

(A) morfologia original, (B) uso da terra (C) suscetibilidade à inundação

Figura 2

Vazões máximas (m³ / s) simuladas para diferentes TRs em 1962 (esquerda) e 2011

Tabela 1

Comparação entre as áreas inundadas considerando diferentes TRs para 1962 e 2011.

Tabela 2

Sobreposição (%) de inundação simulada de 2011 em cada unidade de potencial de inundação obtido a partir antropogênico Geomorfologia

Considerações Finais

Embora as previsões temporais e espaciais presentes nos resultados das duas metodologias aplicadas apresentaram restrições e algumas incompatibilidades, a partir de seus quadros conceituais e técnicos foi possível mapear setores de diferentes suscetibilidades a inundações, apontando, ao final, para um conjunto de elementos complementares entre as metodologias, que podem levar a um aperfeiçoamento de suas abordagens. Como um exemplo, a possibilidade de incorporar os limites obtidos no mapeamento morfológico fornecidos pela Geomorfologia Antropogênica nas informações topográficas utilizadas como entrada na modelagem de simulações de inundação. Ainda, é possível mencionar a evolução do raciocínio probabilístico e da utilização de técnicas estatísticas para aumentar a precisão da previsão temporal das inundações, relacionando-as, por exemplo, aos limites e altitudes das feições fluviais originais mapeadas. Estes exemplos estão concentrados em possibilidades de utilização destes conhecimentos para finalidades aplicadas, tanto da geomorfologia antropogênica e seus produtos cartográficos associados, quanto da hidrologia e as modelagens de condições críticas à drenagem urbana.

Agradecimentos

À Fapesp pelo fomento financeiro da pesquisa (processo nº 2011/16.396)

Referências

[1] Goudie A. “Human influence in geomorphology”. Geomorphology, Vol. 7, Special Issue Geomorphology the Research Frontier and Beyond, (1993). pp. 37-59.
[2] Leopold L. B., Wolman M. G. E., Miller, J. P., “Fluvial Processes in Geomorphology”.1st edition, W. H. Freeman & Co, (1964).
[3] Ward R., “Floods. A geographical perspective”. 1st edition, The MacMillan Press (1978).
[4] Sant’Anna Neto J. L., “Da climatologia geográfica à geografia do clima: Gênese, paradigmas e aplicações do clima como fenômeno geográfico.” Revista da Anpege, Vol. 4, (2008), pp. 51-72.
[5] Suriya S., Mudigal B. V., “Impact of urbanization on flooding: the Thrissolam sub watershed – A case study”. Journal of hydrology, Vol. 412-413, (2012), pp. 210-219.
[6] Canholi A. P., “Drenagem Urbana e Controle de Enchentes”. 1st edition, Oficina de Textos, (2005).
[7] Rodrigues C., “Morfologia Original e Morfologia Antropogênica na definição de unidades espaciais de planejamento urbano: exemplo na metrópole paulista.”, Revista do Departamento de Geografia, No. 17, (2005), pp. 101-111.
[8] Rodrigues C., “Avaliação do impacto humano da urbanização em sistemas hidromorfológicos. Desenvolvimento e aplicação de metodologia na Grande São Paulo”. Revista do Departamento de Geografia, No. 20, (2010), pp. 111-125.
[9] Nir D. “Man, a geomorphological agent – An introduction to Antropic Geomorphology”. 1st edition, The Hebrew University, (1983).
[10] Cooke R. U., Doornkamp J. C., “Geomorphology in environmental management: a new introduction”. 2nd edition, Oxford University Press, (1990).
[11] Szabó J; Dávid L.; Lóczy D. “Anthropogenic geomorphology: a guide to man-made landforms.” 1st edition, Springer, (2010).
[12] HEC-RAS River Analysis System – User’s Manual, Version 4.1, (2010).
[13] Chow V. T., “Open channel hydraulics”. MCGRAW-HILL, (1959).