Autores

Taitson Bueno, G. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS) ; Duarte Diniz, A. (UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA) ; Georgenes Magarotto, M. (UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA) ; Nascimento, N.R. (UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA) ; Fritsch, E. (IMPMC - UNIVERSITÉ DE PARIS 6)

Resumo

Os baixos platôs do NW da Amazônia têm paisagens diversas. Buscou-se discutir efeitos da incisão da drenagem nas paisagens da borda de um platô. Foram feitos a compartimentação por imagem, o levantamento topográfico, tradagens e trincheiras. Coexistem dois sistemas morfológico-funcionais: platô, nos topos tabulares; e vertente, nos vales das incisões. Nos topos do platô uma “ilha” de Espodossolo entre colinas com Latossolo sugere uma paleopaisagem de platô latossólico com depressões com Espodossolo. Nas vertentes elaboradas sobre os Latossolos do platô, Cambissolos e Neossolos se desenvolvem do saprolito do antigo Latossolo. Nas vertentes elaboradas nas áreas de Espodossolos do platô, a vertente tem topo arenoso; afloramento do aquífero suspenso e horizontes espódicos; material caolinítico (saprolito do Espodossolo) na base. Esse material é impregnado pela água negra que aflora, gerando nova podzolização. Essa diversidade de materiais e funcionamentos explica a diversidade da paisagem.

Palavras chaves

paisagem de platôs; incisão da rede de drenagem; Amazônia

Introdução

O relevo da parte central da Amazônia é dominado por uma superfície aproximadamente plana situada entre 10 e 40 metros acima do nível dos rios mais importantes. Esses baixos platôs (AB’SABER 1954) apresentam continuidade lateral sobre diferentes tipos de rochas. As bordas dos platôs, ao longo dos eixos de drenagem mais importantes, apresentam relevo de colinas convexas ou com topos tabulares. À medida que se dirige da borda dos platôs rumo aos divisores de águas desses eixos de drenagem, as colinas de topos tabulares aumentam em área e o relevo é cada vez mais plano, caracterizando o platô propriamente dito. Nas zonas centrais desses platôs, ao longo dos divisores de águas principais, ocorrem zonas de saturação hídrica temporária ou permanente e relevos de depressões. Os platôs apresentam mantos de alteração espessos, resultantes de extenso intemperismo e pedogênese. Suas formações superficiais são complexas, incluindo restos de couraças ferruginosas Latossolos e Argissolos, lado a lado com solos hidromórficos dos tipos Gleissolos, Plintossolos e Espodossolos (COSTA et al. 1977). A cobertura vegetal e as condições ambientais locais são fortemente condicionadas pela heterogeneidade de solos e de funcionamentos hídricos. Embora as paisagens da superfície dos platôs apresentem grande complexidade, nas zonas de colinas convexas e tabulares das bordas desses platôs essa complexidade é ainda maior. Isso se explica pela introdução de um novo elemento genético na paisagem, a incisão da superfície do platô por uma densa rede de canais de baixa ordem. No baixo Rio Negro, a incisão da rede de drenagem afetou significativamente apenas o grupo dos solos de origem laterítica (restos de couraças, latossolos e argissolos), pois nessa parte da bacia as formações hidromórficas restringem-se ao centro dos interflúvios. No alto rio Negro essas formações ocorrem tanto nas zonas centrais dos interflúvios quanto em sua borda, tendo sido, portanto, também afetadas pela incisão da rede de drenagem. A incisão de canais de drenagem sobre relevos de platôs é há muito tempo descrita na literatura geomorfológica (ex: John Wesley Powell, sobre o Grand Canyon, em 1875). Nas regiões de rochas sedimentares, sobretudo em climas áridos, é comum observar os estratos horizontais dessas formações nas escarpas ou vertentes das incisões fluviais. Nas regiões mais úmidas, os estratos horizontais, mas aqui de espessos e antigos mantos de alteração, também podem ser encontrados ao longo das vertentes de incisões. Eles constituem agora o material de origem de uma nova pedogênese. Wright (1963) descreve uma vertente elaborada por incisão fluvial ao longo da qual é possível acompanhar os materiais da sequência vertical do manto de alteração de um platô, na Austrália. Afirma ainda que os solos das bordas dissecadas desta paisagem se formam a partir destes materiais ricos em caolinita e do saprolito. Nos platôs costeiros da Carolina do Norte (EUA), Gamble e Daniels (1970) descrevem uma vertente de incisão fluvial que intercepta os horizontes pedológicos do platô e rochas sedimentares subjacentes. Ao longo da vertente desenvolve-se in situ um horizonte eluvial (E) que conserva características dos materiais do antigo manto, seu material de origem (ex: nódulos de plintitas). Nos baixos platôs de Manaus, Meis (1968) descreveu crostas lateríticas e solos truncados pela abertura dos vales de igarapés. Os horizontes dessas formações de platôs são cortados em incorformidade erosiva por formações de vertente interpretados como coluviais (MEIS, 1968). O objetivo deste trabalho foi mapear a organização da paisagem natural em uma área chave da zona de colinas da borda do platô, na bacia do alto Rio Negro, e discutir as consequências do processo de incisão da rede de drenagem para a evolução e diversidade da paisagem.

Material e métodos

Área de estudos A área estudada se localiza ao sul da cidade de São Gabriel da Cachoeira, NW do Amazonas, no baixo curso do Rio Curicuriari, afluente do Rio Negro. O substrato geológico são os granitos do Escudo Guianense (Fernandes, 1977) e a precipitação média anual é da ordem de 3000 mm (Costa et al., 1977). O relevo é dominando pelos interflúvios tabulares do baixo platô da Amazônia central, nivelados entre 80 e 100 metros de altitude. Sobre esses relevos ocorrem Latossolos, Argissolos e Espodossolos. Os Espodossolos ocupam as partes centrais dos interflúvios, mas podem se estender até a borda dos platôs, de forma contínua ou na forma de “ilhas” (Costa et al., 1977). Latossolos e Argissolos ocorrem preferencialmente mais próximos da borda dos platôs. A cobertura vegetal é de floresta sobre os Argissolos e Latossolos e de campinarana sobre os Espodossolos (Silva et al., 1977). A área de estudos foi escolhida por se situar em numa borda dissecada de platô onde coexistem solos de natureza laterítica (Latossolos e Argissolos) e Espodossolos. Os Espodossolos ocorrem na forma de “ilhas”. Procedimentos A área-chave foi escolhida em imagem de satélite Ikonos, a partir da qual se elaborou um mapa preliminar de unidades de paisagem. Em campo foi feito um levantamento topográfico em malha de 173 pontos, separados entre si por 50 m de distância, englobando uma “ilha” de Espodossolo e seu entorno (Figura 1). Os dados altimétricos foram obtidos por meio de par de altímetros digitais. Foram feitas sondagens exploratórias com uso do trado para observação dos solos. Duas trincheiras principais foram abertas, ambas nos limites da “ilha” de Espodossolo. A primeira foi situada sobre a superfície do platô, na transição lateral do Espodossolo para o Latossolo. A segunda foi situada numa ruptura de declive em que a superfície do platô com Espodossolo é interrompida por um vale aberto pela incisão da rede de drenagem (Figura 2). Foram observados principalmente aspectos estruturais dos solos, compreendendo a distribuição e a geometria dos horizontes.

Resultado e discussão

A distribuição espacial dos solos na área estudada é apresentada na Figura 2. Os solos podem ser agrupados em dois sistemas morfológico-funcionais: o sistema de platô e o sistema de vertentes. O sistema de platô, cuja gênese inicia-se antes do processo de incisão da rede de drenagem, é representado na área estudada por uma “ilha” de Espodossolo que transiciona lateralmente para o Latossolo. Essa transição só pode ser recuperada nas partes do platô que não foram recortadas pelas incisões e que aparecem como “pontes” que conectam a colina de topo plano com Espodossolos e campinarana com as colinas adjacentes cobertas por Latossolos e floresta. A trincheira ilustrada na Figura 3 mostra a transição lateral entre Latossolos e Espodossolos. Observa-se, na extremidade esquerda da fotografia, a parte de Espodossolo e, do lado direito, a extremidade latossólica. A parte central da fotografia mostra a transição entre os dois solos, onde os horizontes eluviais do Espodossolo se projetam sobre o Latossolo na forma de uma “língua”. Observa-se também um estreito horizonte espódicos (Bs), que se forma por superimposição no material do Latossolo. Uma segunda “língua” eluvial foi identificada por meio de tradagens a 3 m de profundidade, sobreposta a um segundo conjunto de horizontes espódicos, mais orgânicos. A transição entre Latossolos e Espodossolos em posição de topo de platô foi descrita na Amazônia guianense por Boulet et al., (1982) como um sistema de transformação pedológica em que o Espodossolo se desenvolve lateralmente em detrimento do Latossolo. A topografia sugere que, anteriormente à incisão da rede de drenagem, a “ilha” de Espodossolos e campinarana era uma zona deprimida e hidromórfica sobre o platô, circundada por Latossolos cobertos por floresta. Esse tipo de distribuição pode ser observado atualmente nas partes do platô que permaneceram relativamente preservadas da incisão da rede de drenagem. No sistema de vertentes encontram-se dois tipos principais de ambiente, determinados principalmente em função do tipo de cobertura inicial sobre a qual o vale se desenvolveu. Nas vertentes elaboradas nas áreas de coberturas inicialmente latossólicas, ocorrem Neossolos e Cambissolos de cor amarelo pálido. As cores pálidas se justificam pelo material de origem desses solos ser os horizontes de alteração caoliníticos empobrecidos em óxidos de Fe da raiz dos Latossolos de platô. Esses materiais são progressivamente menos intemperizados à medida que se desce a vertente, fato que talvez explique o maior desenvolvimento da floresta se comparada com aquela que recobre os Latossolos do platô. Nas vertentes elaboradas nas áreas de cobertura inicialmente do tipo Espodossolo, a incisão da rede de drenagem produziu uma configuração mais diversa. A alta vertente tem como substrato os materiais arenosos dos horizontes eluviais do Espodossolo. Descendo a encosta observa-se o afloramento do aquífero suspenso que, nas áreas de Espodossolo, é sustentado pelos horizontes espódicos (Bh e Bhs), endurecidos e pouco permeáveis. O afloramento do aquífero se deve ao fato de os horizontes espódicos serem interceptados pelo plano da vertente (Figura 4). Observa-se, na parte esquerda da fotografia, que os horizontes E e Bh do Espodossolo estão dispostos de forma discordante em relação ao plano da vertente. O plano da vertente trunca esses horizontes que passam a acompanhar grosseiramente sua declividade dali para jusante. Nessa parte da vertente cria-se um ambiente bastante especial, caracterizado por saturação e exfiltração de soluções ácidas e ricas em material orgânico (águas negras). Ali, a decomposição do material orgânico é mais lenta e a serrapilheira atinge espessura de até 10 cm. A jusante deste ponto, ao longo da encosta, expõem-se os materiais predominantemente caoliníticos, brancos, que são os horizontes de alteração subjacentes aos horizontes espódicos da sequência vertical do perfil de Espodossolo de topo de platô. Esses materiais vêm sendo impregnados, em sua parte de montante, pelas águas negras que exfiltram do ponto onde afloram os horizontes espódicos. Formam-se por esse processo novos horizontes espódicos sobre o material caolinítico desprovido de Fe. Tal processo foi interpretado por Rossin (2013) como de formação de uma segunda geração de Espodossolos, ainda sem horizonte eluvial (cripto-Espodossolos). Na parte baixa da vertente, os materiais permanecem esbranquiçados e sob a influência de um segundo aquífero, este de águas claras, caracterizando um Gleissolo. Na base da vertente pode aflorar a rocha granítica. A cobertura vegetal ao longo da encosta é de campinarana na parte alta passando a floresta na média e baixa vertente, onde ocorrem substratos menos intemperizados e com maior disponibilidade de nutrientes. Dessa evolução das vertentes resultam vales assimétricos, não apenas do ponto de vista geomorfológico, mas também quanto ao tipo de solo e de cobertura vegetal.

Figura 1

Localização da área de estudos.

Figura 2

Distribuição de tipos de solo em área de incisão de drenagem na borda do platô.

Figura 3

Trincheira da área de transição entre Espodossolo e Latossolo sobre o platô.

Figura 4

Espodossolo truncado pela vertente de uma incisão de drenagem

Considerações Finais

As paisagens naturais dos baixos platôs do NW da Amazônia são de grande heterogeneidade. Inicialmente deve-se considerar a presença de um sistema de platô, onde se desenvolvem predominantemente solos de natureza laterítica (sobretudo Latossolos) lado a lado com Espodossolos. Esse quadro, por si só, implica em grande complexidade de mecanismos pedogenéticos, de dinâmicas hídricas, de transferência de materiais, que se refletem nas formas de relevo e na cobertura vegetal. Nas bordas dos platôs da região introduz-se outro elemento, representado pela incisão da rede de drenagem e pelo estabelecimento de sistemas de vertente. As incisões expõem, ao longo das vertentes, a sequência vertical dos antigos perfis de alteração do platô, transformados agora em materiais de origem para uma nova pedogênese. Além disso, a incisão da rede de drenagem modifica o funcionamento hídrico, fato que é mais marcante nas encostas elaboradas nas áreas de Espodossolo, solo que apresenta forte gradiente textural, horizontes endurecidos e aquíferos suspensos. A complexidade daquelas paisagens não pode ser compreendida sem que se façam estudos em nível de detalhe e sem que se considere a integração de fatores pedogenéticos, geomorfológicos, hidrológicos e associados à dinâmica da cobertura vegetal e da matéria orgânica.

Agradecimentos

À FAPESP pelo financiamento desta pesquisa.

Referências

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FERNANDES P.E.C.A, PINHEIRO S.S., MONTALVÃO R.M.G., ISSLER R.S., ABREU A.S.; TASSINARI C.C.G. (1977). Geologia. Içá, 14. DNPM/Projeto Radambrasil, 19-123.

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SILVA F.C.F., JESUS R.M., RIBEIRO A.G. (1977). Vegetação. Içá, 14. DNPM/Projeto Radambrasil, 229-396

WRIGHT, R. L. 1963. Deep weathering and erosion surfaces in the Daly River basin, Northern Territory. J. Geol. Soc. Austral. 10: 151–163.