Autores

Lima, A.G. (UNICENTRO) ; Flores, D.M. (PPGF/USP)

Resumo

Rios em basaltos apresentam perfis escalonados devido às diferenças de resistência à erosão das zonas intraderrame. Atividade neotectônica pode obscurecer a identificação desse controle ao gerar knickzones, independente da zona do derrame e com declives variados. A aplicação da análise declive-área, em escala 1: 50.000, a um rio com cerca de 80 km de extensão, desenvolvido sobre basaltos na média bacia do rio Iguaçu (PR), procurou avaliar a eficiência da metodologia para discriminar entre controle litológico e tectônico. Foram identificadas duas tendências limiares nos declives dos basaltos vesiculares (ks = 0,0311; θ = 0,46) e basaltos maciços (ks = 0,0512; θ = 0,46). Declividades acima do limiar superior podem ser atribuídas à neotectônica. Segmentos convexos, mas com declives situados entre os limiares, podem ser atribuídos à neotectônica quando relacionados com lineamentos estruturais, porém evidenciam que o ajuste morfológico pela potência do escoamento é mais efetivo.

Palavras chaves

erosão fluvial; perfil fluvial; neotectônica

Introdução

Os rios que correm sobre basaltos apresentam comumente perfis escalonados, com muitas zonas de ruptura de declive (knickzones), identificadas em campo como zonas de corredeiras e pequenas quedas, e rupturas de declive pontuais (knickpoints), identificadas como cachoeiras (Lima e Binda, 2013). Em princípio, o escalonamento pode ser atribuído ao contraste erosivo entre as diferentes zonas dos derrames basálticos, ou seja, zonas de topo de derrames, com maior vesicularidade, e zonas centrais, mais maciças (Leinz, 1949). Embora este seja um controle significativo, principalmente em grandes rios, é conhecido que o controle tectônico atua com muita frequência, gerando knickpoints e knickzones tanto em basaltos vesiculares quanto em basaltos maciços (Lima e Binda, 2013). A identificação do registro neotectônico por meio da morfologia do perfil longitudinal de rios tem sido feita mais recentemente utilizando-se do pressuposto que a erosão fluvial em sistemas predominantemente rochosos é conduzida pela tensão de cisalhamento (Howard e Kirby, 1983) ou pela potência do escoamento (stream power; Seidl e Dietrich, 1992). Uma simples formulação onde a declividade (S) é relacionada à área de drenagem (A; Proxy para vazão de água e sedimentos) por meio de uma função potência (S = ksAθ), é a síntese dos chamados modelos de incisão fluvial pela potência do escoamento. Nessa formulação, também chamada análise declive-área ou relação declive-área, ks é considerado o índice de declividade e θ é o índice de concavidade do perfil longitudinal. A relação declive-área mostra-se regular quando se trata de um substrato com litologia e/ou soerguimento uniforme (Whipple, 2004). Em outras palavras, sendo uniforme a resistência erosiva de determinada litologia, a declividade de um canal diminuirá progressivamente rio abaixo, seguindo o aumento na vazão ou da área de drenagem. Isso permite identificar trechos com declividades que fogem da tendência uniforme e associá-los a mudanças na resistência das rochas do leito ou a interferências tectônicas. Diferentes litologias (e resistências erosivas) estão associadas a diferentes índices de declividade (Whipple, 2004). Nos basaltos, as diferenças intraderrame (vesicular/maciço) ocasionam resistências erosivas diferentes, que associadas a interferências tectônicas, como falhas transversais aos canais, produzem uma grande variabilidade de declives. Considerando que zonas equivalentes de derrames diferentes aparecem ao longo de um rio, é possível esperar que haja duas tendências distintas nas declividades rio abaixo, cada uma referindo-se a uma zona dos derrames (Lima, 2014). Em complemento, declives produzidos por interferência neotectônica não estariam ajustados a nenhuma dessas tendências. Como parte de um estudo maior, este trabalho apresenta o resultado da análise declive-área para um rio desenvolvido sobre basaltos da Formação Serra Geral, no estado do Paraná. O objetivo é ilustrar a variabilidade sistemática de declives comum nesses rios do Planalto Basáltico e o potencial de discriminação entre controle litológico e tectônico com o uso da análise declive-área.

Material e métodos

Para o estudo foi selecionado o rio Santana, que possui extensão de 80,2 km, sendo inteiramente desenvolvido sobre basaltos da Formação Serra Geral (Figura 1). Esse rio é afluente do rio da Areia e faz parte da bacia do rio Iguaçu, no Estado do Paraná. A escolha do rio Santana deu-se em função dele apresentar uma variação sistemática dos declives, caracterizando um perfil longitudinal escalonado, porém com zonas de ruptura de declive que, em análise prévia, mostram-se relacionadas espacialmente a lineamentos estruturais, sugerindo possível controle tectônico. Cartas topográficas digitais, na escala original de 1: 50.000, foram utilizadas para extração do perfil longitudinal do rio, utilizando-se para isso ferramentas do QGIS. Os dados foram trabalhados posteriormente em planilha eletrônica, na qual foram efetuadas as plotagens do perfil e cálculos da relação declive-área. Foi utilizado o mapa geológico da Mineropar (Serviço Geológico do Paraná, 2013) para verificação dos lineamentos estruturais que são cruzados pelo curso do rio. Com base na análise das cartas topográficas buscaram-se evidências de movimentação tectônica associadas aos lineamentos mapeados. Para isto, foram observadas anomalias como assimetrias de relevo e drenagem, curvas anômalas em rios de menor ordem ao cruzarem os lineamentos e knickpoints coincidentes com os cruzamentos entre canais de drenagem e lineamentos. Inspeções de campo foram efetuadas na área da bacia do rio Santana apenas em nível exploratório, para confirmação da litologia e das características dos derrames. Imagens do Google Earth foram utilizadas para verificação de knickpoints ao longo do rio principal e sua relação com os lineamentos mapeados.

Resultado e discussão

PERFIL LONGITUDINAL E ASPECTOS GEOLÓGICOS O rio Santana apresenta um perfil longitudinal cujo desnível total é de 420 m, com pequenas e sistemáticas variações nos declives (Figura 2). Em seu segmento final, a 20 km da sua foz na junção com o rio da Areia, há uma notável zona de ruptura de declive (knickzone), seguida por um segmento ligeiramente convexo. Exposições do leito rochoso são frequentes nesse segmento. Da nascente até o início dessa knickzone final o perfil assume uma configuração geral levemente côncava. Ao longo do rio não há mudança litológica, apenas ocorre mudança no tipo de morfologia dos derrames. Da nascente até a cota de 1040 m o rio corta derrames basálticos de morfologia tabular, passando a correr sobre derrames lobados a partir desse ponto até a cota de 980 m. Os derrames lobados caracterizam-se por zonas vesiculares-amidaloidais espessas (vários metros) e zonas de brechas hidrovulcanoclásticas. Os derrames do tipo tabular possuem zonas vesiculares-amidaloidais mais delgadas e o desenvolvimento mais acentuado das zonas centrais, de caráter maciço e com disjunções em prismas tetragonais. Vários lineamentos estruturais intersectam o curso do rio (Figura 1), sendo que nos primeiros 20 km há um maior adensamento deles. Por toda a sua extensão o rio demonstra sofrer a influência desses lineamentos ao assumir suas direções, ou apresentar curvas anômalas ao cruzar com essas estruturas. ANÁLISE DECLIVE-ÁREA Conforme diversos estudos (por ex. Sklar e Dietrich, 1998; Whipple e Tucker, 1999) a área mínima de drenagem que corresponderia à transição entre o predomínio de processos aluviais para processos fluviais é de 10 km². No caso do rio Santana, se aplicado esse limite são excluídos os dois primeiros trechos (Figura 3). Com isso, estabelecem-se os índices de declividade (ks = 0,0199) e concavidade (θ = 0,27) para o comprimento restante do canal. Os valores dos índices podem não ser elucidativos quanto aos controles sobre os declives, considerando que há uma dispersão de dados. Algumas indicações, entretanto, podem ser obtidas através do índice de concavidade. O valor de θ é relativamente baixo e assinala o fato de que há knickzones situadas na parte final do rio e que não estão ajustadas ao aumento da potência do escoamento (ajuste hidráulico). Em outras palavras, isso indica uma possível interferência por tectônica recente, mais exatamente por falhas. O valor do coeficiente de determinação (R²) sendo baixo reforça essa interpretação. Caso o R² fosse maior, o baixo valor de θ poderia ser devido ao aumento rio abaixo na taxa de incisão por soerguimento tectônico (Kirby e Whipple, 2001; Kirby et al. 2003). Os detalhes da distribuição dos dados na plotagem declive-área podem elucidar melhor acerca dos controles atuantes na esculturação do perfil e, consequentemente, esclarecer a natureza das knickzones. Uma knickzone com declividade acentuada, situada a 20 km da foz promove uma dispersão significativa nos dados (Figura 3). As declividades dos outros trechos acabam se aglutinando em uma faixa relativamente estreita, com diminuição geral dos valores rio abaixo. O limiar superior dessa faixa é formado por pontos que indicam trechos com as maiores declividades, ou seja, correspondem às outras knickzones. Chama a atenção o fato de que as declividades das knickzones seguem uma diminuição regular (R² = 0,97), indicativo de um controle sistemático. O aumento da vazão rio abaixo se faz de forma relativamente sistemática, e está diretamente relacionada à capacidade de erosão do rio, via aumento da potência do escoamento (Bagnold, 1980; Seidl e Dietrich, 1992). Desse modo, a regularidade de diminuição dos declives indica um controle hidráulico. O índice de concavidade das knickzones (θ = 0,46) é idêntico ao índice dos trechos de baixa declividade, o que reforça a noção de controle hidráulico. Além disso, valores como esse são considerados como indicadores de perfis elaborados em condições de tectônica uniforme (Whipple, 2004). Essas tendências de trechos, estabelecendo limiares superior e inferior, também revelam como as características litológicas influenciam a distribuição das declividades. Basaltos vesiculares geram declives baixos enquanto que basaltos maciços geram declives altos (Lima e Binda, 2013; Lima, 2014). É natural que entre os declives mínimos e os máximos existam declives intermediários, os quais são produzidos por erodibilidades intermediárias derivadas de variações no fraturamento das rochas basálticas. Outros comportamentos dos declives aparecem em meio à tendência geral e que estão restritos a segmentos menores do rio e podem ser caracterizados por índices θ e ks diferenciados (Figura 3). Esses comportamentos destacam segmentos côncavos e segmentos convexos. O segmento côncavo melhor delineado hidraulicamente, ou seja, em que a diminuição das declividades ocorre de modo sistemático, está associado a um controle litológico exercido pelos derrames lobados, com maior grau de vesicularidade. Os índices de declividade (ks = 3,677) e concavidade (θ = 1,7) desse segmento são elevados. O primeiro trecho do segmento possui declividade que se ajusta à tendência geral dos declives das knickzones situadas no limiar superior (Figura 3). Zonas de brecha poderiam ser responsáveis pela maior resistência à erosão que zonas essencialmente vesiculares e poderiam produzir, assim, declives mais íngremes. Embora essa afirmação pareça plausível, considerando a mecânica dos processos erosivos fluviais nos basaltos (Lima e Binda, 2015), não há constatação empírica que a valide até o momento. Porém, um lineamento que corta o final desse primeiro trecho e controla o direcionamento de parte do vale à jusante, sugere a existência de falha. Os índices θ e Ks elevados são indicativos de alta erodibilidade associada a um controle tectônico que força a incisão, elevando a declividade. Em síntese, a declividade relativamente elevada em basaltos de derrame lobado poderia ser originada por falhamento. Devido à menor resistência erosiva da rocha vesiculada, o declive é mais facilmente ajustado morfologicamente pela potência do escoamento, sem produzir um declive que sobressaia na plotagem declive-área (Figura 3) acima do limiar superior. Um último aspecto que corrobora a noção de ajuste hidráulico desse segmento é o fato de o último trecho possuir declividade ajustada à tendência dos trechos de baixa declividade, correspondentes ao limiar inferior. Há dois segmentos convexos inscritos no perfil do rio Santana e melhor visualizados na plotagem declive-área (Figura 3). No primeiro caso, situado no curso médio do rio, o término do segmento coincide com o cruzamento de um lineamento, o que é altamente sugestivo da existência de falhamento recente (Whittaker et al., 2008). O trecho de maior declividade está dentro dos limites da faixa de declives que podem estar ajustados hidraulicamente, ou seja, a movimentação tectônica não superou a capacidade de o rio ajustar seus declives. As características litológicas desse trecho podem contribuir para o comportamento subordinado da possível tectônica. Trechos em basalto vesicular-amidaloidal apresentam maior erodibilidade (Lima e Binda, 2015), e a movimentação tectônica não sendo grande pode ser suplantada pelo ajuste hidráulico. No segundo segmento convexo, situado no final do rio, as declividades são maiores e todas estão situadas acima do limiar superior da zona de ajuste hidráulico. Neste caso a convexidade provavelmente relaciona-se à maior incisão do rio da Areia, no qual o rio Santana deságua. Essa maior incisão pode estar relacionada a falhamentos no rio da Areia. Em caso contrário, os declives de ambos os rios estariam ajustados na junção. As declividades relativamente altas da zona convexa podem também ter a influência de provável esculturação em basaltos maciços. A zona de ruptura de declive mais proeminente do rio Santana também está associada a um lineamento que cruza o canal. Como essa zona e

Figura 1

Localização da área de estudo e seu contexto geológico, com base no levantamento efetuado pelo Serviço Geológico do Paraná (2013).

Figura 2

Perfil longitudinal do rio Santana.

Figura 3

Relação declive-área para o rio Santana. As faixas cinza realçam os segmentos côncavos (ccv) e convexos (cvx) discutidos no texto.

Considerações Finais

A relação declive-área fornece uma boa estrutura de análise com a qual é possível verificar comportamentos padrões, relacionados a homogeneidades litológica e tectônica, e desvios. Quando aplicada em toda a extensão de um rio como o Santana, sujeito a variações na erodibilidade do substrato e interferências neotectônicas, as indicações dos índices de concavidade e declividade são muito genéricos para fornecerem uma interpretação útil. Entretanto, utilizando a concepção da análise declive-área de modo mais pormenorizado é possível identificar a natureza dos controles sobre os declives de um rio. A principal concepção inerente à análise declive-área é a de tendência. Segmentos desenvolvidos sob condições homogêneas de substrato e/ou tectônica apresentam tendências definidas, que podem ser descritas pelos índices de declividade e concavidade (Whipple, 2004). Em basaltos, que apresentam variações sistemáticas na erodibilidade intraderrame, a análise declive-área mostra-se eficiente para diferenciar a resposta geomorfológica entre zonas maciças e zonas vesiculares. Conhecidas essas respostas diferenciadas, em termos dos índices de concavidade e declividade, é possível avaliar interferências tectônicas nos declives. O não ajustamento de trechos às tendências ditadas pela interação litologia-potência do escoamento sugere tectônica recente, e convexidades que não fogem às tendências sugerem tectônica subordinada à intensidade de ajuste hidráulico.

Agradecimentos

Referências

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